terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

São Bernardo. Graciliano Ramos. A Fazenda São Bernardo.


Depois de ler, em dezembro, a extraordinária biografia de Graciliano Ramos, O Velho Graça - Uma biografia de Graciliano Ramos de Dênis de Moraes, me comprometi com a leitura de seus principais livros. Como Graça não é literatura para final de ano, somente agora iniciei esta tarefa. E comecei bem. Terminei de ler São Bernardo, o seu segundo grande romance.


Capa da Record, do livro São Bernardo de Graciliano Ramos, com um belo posfácio.

Não resisto em transcrever o escrito na contracapa do livro sobre a literatura de Graça, que também merece amplo destaque em sua biografia: "Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxaguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de ter feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer." Depois verifiquei que isto está na contracapa de todos os livros dele, editados pela Record.

A literatura de Graciliano é árida como o sertão, como a fala do sertanejo. Os diálogos ou as conversas são diretas, sem rodeios desnecessários ou inúteis. Tudo é árido como a vida no sertão. "A palavra foi feita para dizer". O tema de São Bernardo é a fazenda do sertão. A fazenda, ou o latifúndio de Paulo Honório, o cinquentão proprietário. Fazenda em Viçosa, nas Alagoas, a terra do escritor. Conhecimento de causa.
São Bernardo, o romance de Graciliano também foi levado ao cinema.

A fazenda fazia o sonho do proprietário, que tivera vida difícil, alfabetizado em Bíblia protestante e prisão. Em terra sem lei e sem justiça, se fez um vencedor. "O meu fito na vida foi apossar-me  das terras de São Bernardo, construir esta casa, plantar algodão, plantar mamona, levantar a serraria e o descaroçador, introduzir nestas brenhas a pomicultura e a avicultura, adquirir um rebanho regular." Tudo isso ele conseguiu. O alvo foram os Padilha. Salustiano, seu antigo patrão, nem vivera, pois, queria ver o filho Luís como doutor. Luís, viciado em baralho e bebida, se tornou vítima fácil e lhe tomou as terras. A derrubada da cerca dos Mendonça, só fez aumentá-las.

Para ter uma vida feliz, precisaria casar. Depois de muito escolher arranjou o consentimento de Madalena, a boa professora e sobrinha de Dona Glória. Aí começam os seus problemas. Digo e repito, os seus problemas. Invenções do imaginário. O narrador nos induz que Madalena era mulher ideal e perfeita em sua conduta, em seu cotidiano, mas não no imaginário de Paulo. Ali ela era a encarnação do demônio. Sorrateira e traiçoeira ela lhe aprontava e lhe infernizava. Tudo fazia, sem deixar pistas. A vida dos dois, ou melhor, dos três - teve um filho, se tornou insuportável. O choro do menino o incomodava. Madalena, à sua maneira deu um jeito em tudo. Depois Paulo reclamou de Solidão, nem choro de criança tinha mais.

O romance de Graciliano Ramos - São Bernardo - se ocupa do latifúndio nordestino e suas mazelas.

Vem a revolução e as crises. A fazenda se consome. Não vale a pena produzir e muito menos colher. Este era o cenário de angústia e crise em que Paulo Honório vivia. O narrador expressa assim a sua dor, angústia ou loucura em algumas frases finais. "Estraguei a minha vida estupidamente. Penso em Madalena com insistência. Se fosse possível recomeçarmos... Para que enganar-me? Se fosse possível recomeçarmos, aconteceria exatamente o que aconteceu. Não consigo modificar-me, é o que mais me aflige".

Em meio a esta aflição procura algumas explicações para a sua infelicidade. Culpa a sua profissão, ou o exercício dela. E assim vai se remoendo: "Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos e os propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo. Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins. [...] A desconfiança é também consequência da profissão". E, em desespero continua: "Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes. Se Madalena me via assim, com certeza me achava extraordinariamente feio." E ainda, um lamento final: "Se ao menos a criança chorasse... Nem sequer tenho amizade a meu filho. Que miséria."

Caricatura de Graciliano Ramos, um escritor incomparável, árido e essencial.

O livro vem acompanhado de um posfácio, escrito por Godofredo de Oliveira Neto. Ele se detém bastante na literatura de Graciliano, começando pela necessidade que o autor tinha em escrever. Termina com uma referência ao caráter ideológico da obra, sabendo-se que Graciliano Ramos era comunista, embora ainda não filiado ao Partidão, em 1934, quando o livro foi escrito. Godofredo assim se expressa: "Graciliano tinha mesmo em vista contribuir, com a arte, para transformar a estrutura social. E é conhecido que julgava indispensável viver como um miserável para poder falar do ponto de vista desse miserável. A busca desse real é a expressão estética de S. Bernardo. Através da arte, aproximar-se do real, com a certeza de que tal verdade jamais será tingida na sua essência. O grito de cunho social de que S. Bernardo é portador se faz dentro dessa limitação." E conclui:

"Se Paulo Honório, por abraçar caminhos individuais, sem se entrosar nos movimentos coletivos, foi punido, resta, ao se terminar a leitura de S. Bernardo, a sensação de que o homem, ser político, não pode aspirar à absoluta isenção e à racionalidade. Traz com ele um emaranhado de conflitos internos que lhe turvam necessariamente a razão." Creio que também é visível na obra, que não existem as mesmas facilidades de conquistas nas coisas materiais, do que aquelas que se referem ao campo das relações humanas. Ainda destaco a mais triste das conclusões a que Paulo Honório chegou. "Não consigo modificar-me, é o que mais me aflige."


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