terça-feira, 17 de junho de 2014

Contos do nascer da terra. Mia Couto.

Dispondo de tempo livre, posso hoje transitar por todos os gêneros literários. Sem tempo livre, praticamente, só fazia leituras obrigatórias, leituras determinadas pelo exercício da atividade profissional. Confesso, que ao longo da minha vida, tive pouco contato com contos e, ainda menos, com a poesia. Tenho dificuldades com a sua leitura até hoje. Poesia mesmo, só em voz alta. Por isso mesmo, dei vez para os contos de Mia Couto. Os Contos do nascer da terra simplesmente me encantaram. 

Vejam só a apresentação deste livro, na sua contra capa. É uma espécie de apresentação do título: "Não é da luz do sol que carecemos. Milenarmente a grande estrela iluminou a terra e, afinal, nós pouco aprendemos a ver. O mundo necessita ser visto por outra luz: a luz do luar, essa claridade que cai com respeito e delicadeza. Só o luar revela o lado feminino dos seres. Só a lua revela intimidade da nossa morada terrestre. Necessitamos não do nascer do sol. Carecemos do nascer da terra". Embora o alerta de Platão de que a luz do sol ofusca, a humanidade foi cegada pelas luzes da racionalidade. Da racionalidade técnica e instrumental que nos conduziu a uma desumanização. Talvez é por tudo isso que eu  gosto tanto de músicas compostas em clave de lua.
Contos do nascer da terra, de Mia Couto é mais um trabalho de resenha que eu faço, na parceria com a Companhia das Letras.

Mia Couto diz preferir o conto, pois "num flash, pode estar ali tudo: a poesia, o romance condensado, a capacidade de surpreender e de construir o inesperado". Isto são os contos do nascer da terra. Se já considero difícil a leitura de contos, imagina então fazer a sua resenha. O livro consta de 35 contos e, ao que parece, quanto menores, mais bonitos eles são. Expressar beleza com poucas palavras é a essência de uma obra de arte. Busquei até a definição do que é um conto. O Aurélio sempre me ajuda. velhos hábitos adquiridos ao longo do tempo. Assim vi que um conto é uma "narrativa pouco extensa, concisa, e que contém unidade dramática, concentrando-se a ação num único ponto de interesse". satisfeito, mas não por inteiro.

Mia Couto é de Moçambique, aquele país de colonização portuguesa que dá para o Oceano Índico. Isso, obviamente influencia a sua literatura, e, de um modo muito positivo. Tem uma forma muito bela de expressão, sem esconder as dores deste povo, talvez porque as dores são uma das mais fortes manifestações do humano. Até anotei no meu caderno. Ele usa de uma linguagem metafórica, cheia de contraposições e um profundo olhar humano.

Também anotei algumas frases esparsas, que anoto sem explicações: "nada mais triste que caixão pequenino". - "A vida não tem metades. É sempre inteira". - "Estou a insistir, patrão. O senhor entrou na vida por caminho de mulher. Chame outra mulher para entrar de novo". - "Que o amor é como o mar: sendo infinito espera ainda em outra água se completar". - "Asfixiação boca a boca: isso é o beijo". - "Minha filha, não deixe o corpo lhe nascer antes do coração". E assim por diante. Mas se isso não basta, tem muito mais.

Tem um conto, o último vôo do tucano que, embora eu não goste de tucanos, gostei. Sempre ouvi dizer que os tucanos são extremamente predadores, mas neste conto eu aprendi com a pergunta que a mulher fez ao marido: "você conhece a maneira dos tucanos ninharem"? Ao responder que sim, veio a proposta, "Por que não fazemos igual como eles"? A explicação vem logo a seguir: "Imitavam a tucana que se depena para construir o ninho." Mas neste conto também tem uma das mais belas imagens que já vi, ao longo de toda a minha vida. A imagem de um amor que se foi, que está distante. Até já fiz um certo ensaio no uso desta imagem. "Você, marido (assim está no original - mas dá para substituir), sempre há-de voltar. Você tem doença da água: mesmo da nuvem sempre regressa".

Mas o encanto e a ternura crescem em dois contos dedicados para a filha: "A luavezinha" e "A menina sem palavra". Vejam só o começo de "A luavezinha": "Minha filha tem um adormecer custoso. Ninguém sabe os medos que o sono acorda nela. Cada noite sou chamado a pai e invento-lhe um embalo. Desse encargo me saio sempre mal. Já vou pontuando fim na história quando ela me pede mais: - E depois? E depois, pai"? Em "A menina sem palavra" aparece essa mesma ideia da história, de que "sua filha só podia ser salva por uma história! E, presto, lhe inventou uma. Companhia, presença e cuidado são resgatados numa cidade que "quanto mais urbana, menos humana".

O escritor nascido em Moçambique, Mia Couto. É detentor do maior prêmio da língua portuguesa, o prêmio Camões.

Deixo ainda a ficha do livro: COUTO, Mia. Contos do nascer da terra. São Paulo; Companhia das Letras. 2014. Uma observação. Os contos são mais antigos. Foram escritos para periódicos em 1996 e foram agrupados para o livro ao longo de 1997 e que agora chegam ao Brasil. Mas antes ainda uma definição de conto que me satisfez. É do próprio Mia Couto, quando ele fala de sua predileção pelo conto: "Num flash, pode estar ali tudo: a poesia, o romance condensado, a capacidade de surpreender e de construir o inesperado". Coisa de verdadeiro artista.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado pelo comentário. Depois de moderado ele será liberado.