quarta-feira, 4 de junho de 2014

Sobre classe média, meritocracia e uma parábola.

Em texto recente, Marilena Chauí desanca a classe média brasileira. Lhe atribui três abominações: uma abominação política, porque ela é fascista, uma abominação ética, porque ela é violenta e uma abominação cognitiva, porque ela é ignorante. Posteriormente o professor Renato Santos de Souza, da Universidade Federal de Santa Maria disse estranhar esta afirmação. Sentia-se atingido, ao se enxergar como um membro dela e aproveitou ainda para fazer reflexões em torno de uma outra palavra, a meritocracia. Mas ao debruçar-se sobre a questão, ele chega à certa concordância com Chauí, e numa frase categórica ele relaciona e soma as duas categorias: a classe média e a meritocracia.
Na entrevista para a revista CULT, entre outros temas, Marilena Chauí fala da classe média brasileira.
"A minha resposta, então, ao enigma da classe média brasileira aqui colocado, começa a se desvelar: é que boa parte dela é reacionária porque é meritocrática; ou seja, a meritocracia está na base de sua ideologia conservadora". O professor continua então, fazendo uma análise do discurso desta classe média e a compara com a classe média europeia e americana. Você certamente já conhece este discurso, a não ser que você tenha um grupo muito selecionado de amigos. Vejamos:

"Assim boa parte da classe média é contra as cotas nas universidades, pois a etnia ou a condição social não são critérios de mérito; é contra o bolsa família, pois ganhar dinheiro sem trabalhar além de um demérito desestimula o esforço produtivo; quer mais prisões e penas mais duras porque meritocracia também significa o contrário, pagar caro pela falta de mérito; reclama do pagamento de impostos porque o dinheiro ganho com o próprio suor não pode ser apropriado por um governo que não produz, muito menos ser distribuído em serviços para quem não é produtivo e não gera impostos. É contra os políticos porque em uma sociedade racional, a técnica, e não a política, deveria ser a base de todas as decisões: então deveríamos ter bons gestores e não políticos. Tudo uma questão de mérito". Eu não falei, você já ouviu este discurso inúmeras vezes.
Se não tratar com desigualdade.........a desigualdade social permanece. Espaços públicos para a construção da cidadania.

Depois o professor estabelece algumas relações entre as classes médias brasileira, que em sua maioria deve esta condição ao caráter patrimonialista da sociedade brasileira e não à meritocracia, com a classe média europeia, que a é, por fruto de um Estado de bem-estar, responsável pela criação de espaços públicos, onde os direitos sociais tomam forma e as pessoas ascendem social e economicamente e a americana, que ideologicamente aceita e prega a meritocracia mas morre de medo de perder todos os seus méritos, e o seu rico patrimônio, em uma única semana, caso acometido por alguma doença.

Observe bem as figuras. Representam a entrada e a saída da escola. Um, alguns e as massas.

O texto do professor Renato ganha intensidade quando ele expõe as consequências sobre o total da sociedade, quando nela imperam os valores atribuídos à meritocracia. Num ato de ousadia farei uma pequena síntese, mas vou procurar o link deste texto e passá-lo. As consequências seriam: 
a) não considera o ser humano como um portador de direitos. O Estado nada deve a ninguém;
b) é fator gerador de individualismo e de intolerância;
c) provoca o esvaziamento dos espaços públicos. O Estado deve ser mínimo;
d) a ética do merecimento é substituída pela ética do desempenho. Assim Sarney, Merval Pereira e Paulo Coelho tiveram méritos para entrar na Academia Brasileira de letras, e não Mário Quintana e Érico Veríssimo;
e) são estabelecidas relações de poder econômico e político nas avaliações meritocráticas;
f) naturaliza, racionaliza e preconiza as desigualdades sociais;
g) substitui a racionalidade dos valores pela racionalidade técnica e instrumental dos resultados. Assim os jovens não aspiram ser Mário Quintana ou Érico Veríssimo, e se espelham em Eike Batista ou outros milhardários;
h) dilui a subjetividade e a complexidade humana num reducionismo de desempenhos e resultados.

O professor Renato conclui o seu texto de forma enfática: "Enfim, a meritocracia é um dos fundamentos de ordenamento social mais reacionários que existe, com potencial para produzir verdadeiros abismos sociais e humanos".

Segue o link:  http://jornalggn.com.br/fora-pauta/desvendando-a-espuma-o-enigma-da-classe-media-brasileira.
Um enigma. loucura ou prenúncio de mudança.
A propósito, recentemente escrevi uma pequena e singela parábola a respeito da meritocracia, Ei-la:

"Hoje de manhã eu fui implacável. Eu fui trabalhar na minha horta, na chácara em Campo Magro. Pés no chão e mãos na terra. No meu trabalho eu apliquei critérios economicistas e produtivistas. Embora a produção seja apenas para o meu consumo e o dos meus amigos. Apliquei os critérios da meritocracia. Comprei mudinhas e preparei os canteiros. As mudinhas mais fortes e saudáveis eu plantei nos lugares mais centrais do canteiro, as mais mirradinhas eu plantei nas beiradas e, confesso o meu ato de crueldade. As mais feinhas mesmo, eu descartei, eu joguei fora. 

Alguém de vocês teria coragem de aplicar este princípio para as crianças na escola. Pasmem. Num dos destaques no Plano Nacional de Educação a ser votado na segunda feira, consta o princípio neoliberal da meritocracia. Por ele as escolas que obtiverem melhores resultados nos exames de avaliação receberão mais incentivos e verbas. Em consequência as que não obtiverem o bom desempenho, serão punidas ao não receber o incentivo. Para entender a minha historinha substituam as mudinhas da minha horta, pelas crianças das nossas escolas De cada dez palavras que o candidato a presidente da República, AécioNeves fala, uma é a palavra meritocracia. Para tornar os desiguais iguais, é preciso tratar as pessoas como desiguais, mas privilegiando os que mais precisam, ou seja, inverter os critérios da meritocracia. A meritocracia necessariamente gera desigualdade. Você concorda com isso! Ou como conclui o professor em seu texto de que a meritocracia tem "potencial para gerar verdadeiros abismos sociais e humanos.


Nos próximos posts farei uma análise dos princípios gerais do liberalismo e do seu discurso, impregnado dos conceitos e valores da meritocracia.

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