sábado, 4 de junho de 2016

Guerreiros do Sol. Violência e banditismo no Nordeste do Brasil. Frederico Pernambucano de Mello.

No ano passado estive em Sergipe. Aracaju é uma cidade que fascina. Atalaia nada deve a nenhuma orla urbanizada brasileira. Conheci Aracaju nos anos 1990, participando de um Congresso. Já ali tomei a firme decisão de voltar. Queria conhecer as cidades históricas de Laranjeiras e São Cristóvão e o Cânion de Xingó, no rio São Francisco. Também, mais uma vez, aproveitei para ver a majestosa foz do rio São Francisco, uma paisagem sempre emocionante, além de edificante.
O belo cânion de Xingó, no rio São Francisco.

De Aracaju até o Cânion de Xingó são 213 quilômetros, encompridados pela busca, por parte do receptivo, dos turistas em seus respectivos hoteis. Foram quatro horas de viagem. No começo, uma tentativa de continuar dormindo, enquanto a guia não falava.  Mas quando ela começou, não mais parou e o assunto era bom. Lampião e as suas aventuras no sertão. Havia um motivo muito especial para isso. Foi na região de Canindé de São Francisco, no hoje município de Poço Redondo, na fazenda Angicos que Lampião viveu os seus últimos momentos. Isso aconteceu nos idos de 1938. A história contada pela guia foi uma visão totalmente romantizada do maior bandido do sertão. Hoje existe uma rota turística que contempla esta paisagem.

Na minha volta a Curitiba o assunto esfriou, em parte por não encontrar uma boa biografia do heroi ou bandido Lampião.  Depois, estudando sobre a presença da violência na sociedade brasileira, deparei com um livro sob o título Guerreiros do sol. Violência e banditismo no nordeste do Brasil, de Frederico Pernambucano de Mello. A primeira edição tem prefácio de Gilberto Freyre e data de 1984. O exemplar que tenho em mãos é da primeira reimpressão da quinta edição, de 2013. Uma edição de A Girafa. O pesquisador pertence ao grupo da Fundação Joaquim Nabuco.
O livro de Frederico Pernambucano de Mello. Um livro para a academia.

O livro é acadêmico, nada romântico ou romanceado. O seu maior mérito é analisar o banditismo como um fenômeno complexo, produzido por múltiplas causas, e que, em consequência produziu diferentes tipos de bandidos. Critica asperamente as visões meramente econômicas, de origem marxista, que reduz o banditismo a um fenômeno decorrente apenas do latifúndio e da crueldade dos coronéis latifundiários. Apresenta três tipos de cangaceiros, que aqui vou apenas nominar. Em outro post os detalharei. São os cangaceiros por vingança, como meio de vida e como refúgio. É um fenômeno ligado ao sertão profundo, que pouco atingiu a fértil região canavieira litorânea.

O caráter acadêmico do livro, muitas vezes faz a leitura ter um ritmo mais lento. É muito detalhe, fruto de muita e intensa pesquisa. São 519 páginas, distribuídas em oito capítulos e com muitas notas explicativas, ao final de cada capítulo. Tem também prefácio à primeira e segunda edição, além de uma nota referente à segunda edição, relativa ao intervalo entre a primeira e a segunda edição e, ao final, temos apêndice, bibliografia, índice remissivo e notas sobre a vida acadêmica do autor. Tem também mais de cinquenta páginas com fotografias.

Vou dar os títulos dos capítulos por terem sido muito bem postados, dando uma ideia perfeita das abordagens feitas. Cada capítulo também tem a sua epígrafe. Adoro epígrafes. Bem escolhidas, elas são um verdadeira síntese do capítulo trabalhado. Mas vamos aos títulos.
A marca do proprietário. José Baiano.

I. O homem do ciclo do gado e o isolamento sertanejo. É uma delimitação do espaço geográfico em que ocorreu o fenômeno. II. Da violência à criminalidade: estrutura, formas e agentes. Vejam a precisão da colocação da epígrafe: "Como ninguém ignora, - Na minha pátria natal - Ser cangaceiro é a coisa - Mais comum e natural; - Por isso herdei de meu pai - Esse costume brutal". O verso é retirado de uma biografia de Antônio Silvino, provavelmente o segundo, no ranking dos bandidos mais famosos.

III. Cangaço: do endêmico tolerado ao epidêmico repelido. O título dá a perfeita ideia da propagação deste fenômeno que o transformou em epidemia. IV. De cangaços e de cangaceiros: o escudo ético. Bem interessante. Cada bandido tem os seus motivos. É aqui que aparecem os três tipos de cangaço, o de vingança, como meio de vida e como refúgio. V. Secas, agitações sociais e o cangaço como meio de vida. Lampião é o seu maior representante. Uma vez ele foi perguntado sobre o porquê de não abandonar o cangaço. Irritado ele respondeu: "- Se o senhor estiver num negócio e for-se dando bem com ele, pensará porventura em abandoná-lo?" VI. Fronteira e repressão policial: o ciclo dos grandes acordos. O cangaço foi atropelado pelo progresso, especialmente o da tecnologia. Uma questão de armas.
Um dos mais famosos retratos de Lampião.

VII. As muitas mortes de um rei vesgo. O título se refere aos problemas de visão e dos boatos sobre a morte do rei do cangaço. Um glaucoma hereditário. Era cego de um olho. Chegou a pensar em suicídio. Um oftalmologista famoso, que também atendera o padre Cícero, aliviou o seu sofrimento. O vitorioso sobre o cangaço foi o Estado Novo. VIII. Cangaço no verde e no cinzento: a saga dos coronéis sem terra. Aí o autor entra no banditismo na região do verde da cana, onde Antônio Silvino construiu o seu império.

Algumas poucas considerações. Ao longo da leitura, sempre tive presente a idade média. Compare as fazendas com os feudos e você poderá imaginar como teriam sido estes sofridos tempos em que os instrumentos de defesa eram absolutamente primários. Por isso é que vai surgindo o Estado, para atender aos interesses de ordem.

Também pensei muito no crime organizado dos dias de hoje. Situe os sertanejos em outro tempo e espaço, em outro tempo tecnológico e em estruturas urbanas, que você perceberá que os objetivos, as alianças com o poder, as formas de atuação e a perversidade de seus resultados nos indicarão que o fenômeno do banditismo é universal e atemporal. Ele sempre existiu, existe e continuará a existir. E me permitam uma ironia: menos em Brasília.

Uma última observação. Lampião nunca foi um revolucionário. Ele nunca pretendeu mudar a estrutura fundiária do nordeste.


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