terça-feira, 27 de novembro de 2018

"O Idiota" e uma receita de felicidade. Dostoiévski.

O Idiota é um monumental livro de Dostoiéski. O personagem paira, praticamente sobre todas as obras deste que é, seguramente, um dos candidatos a maior escritor do mundo. O idiota é um personagem bondoso, generoso, democrata e nada bélico. O romance foi escrito entre os anos de 1867 e 1869. Dostoiévski era um eslavófilo e profundamente cristão. Em 1849 teve a sua pena de morte comutada pela prisão perpétua na Sibéria. Leva para a prisão, um único livro - O Evangelho. mas tinha lido muitos outros. E como tinha lido!
Uma edição primorosa, com uma bela e necessária apresentação. Esta fala está já quase ao final do livro (Páginas 748-750.


Míchkin - o idiota é um misto de Quixote - Pickwick e Pangloss. É um desambientado, diferente das pessoas comuns, tomadas pelo niilismo ocidental. O idiota é uma alma pura e generosa. O auge deste personagem, o encontramos no capítulo 7 do quarto e último volume de seu livro, no qual se daria a participação do noivado do príncipe com Agláia. Neste capítulo está a eslavofilia do escritor, da qual pretendo fazer um pequeno extrato, para concluir com o seu discurso sobre a felicidade, encontrando-a em meio as coisas mais simples. Creio que esta transcrição nos dá uma ideia do que seja o conceito de idiotia. Apenas lembrando que a cena se passa naquilo que era para ser uma festa de noivado.

Depois de já ter falado bastante ele continua: "Ontem Agláia Ivánovana me pediu que eu permanecesse aqui hoje muito calado. Ou melhor, chegou a me dizer quais os assuntos que eu não deveria falar em hipótese alguma. (Ela sabe em que espécie de assuntos digo incoerências.) Tenho 26 anos, mas não ignoro que sou uma criança. Já muitas vezes me admoestei a mim próprio pois acho que não tenho o direito de exprimir uma opinião já que o faço sempre errado. Foi somente com um tal de Rogójin que uma vez me abri francamente. Líamos Púschkin inteiro, juntos, do qual ele ignorava até o nome. Sempre temi que este meu modo absurdo pudesse desacreditar o pensamento, a ideia dominante. Não tenho gesticulação adequada, causo risos nos outros, enfim... degrado as minhas ideias. Não tenho o senso de proporção, muito menos! E isso é que é pior. Sei que me é muito mais vantajoso ficar sentado, quieto. Mas quando persisto em ficar quieto me torno muito sensível e, o que é mais, me ponho a pensar numa porção de coisas. E então sinto que o melhor é falar. Falando me sinto magnificamente. Todos estão com expressão tão inefável. Prometi ontem a Agláia Ivánovna que ficaria calado hoje toda a noite!

- Vraiment? sorriu o velho dignitário.

- Mas pensando bem vi que não tenho razão em pensar assim. A sinceridade não é declamação, mesmo que pareça ser só isso e nada mais. Não é verdade mesmo?

Às vezes.

Quero explicar tudo, tudo, tudo! Sim, cuidam que sou utópico? Teórico? Pelo amor de Deus! Mas as minhas ideias são o que há de mais simples! Não acreditam? Riem? Digo-lhes, sou às vezes desprezível exatamente por não manter sempre acesa essa minha fé, por vacilar às vezes. Quando entrei aqui neste salão, ainda há pouco, perguntava a mim mesmo: 'Como me devo dirigir a eles? Com quais palavras devo começar a fim de que me compreendam ao menos um pouco?' Como entrei amedrontado! E mais amedrontado estava por todos aqui. Foi terrível, terrível! E, afinal, por que esse medo? Não é vergonhoso ter medo? Por que há um espírito avançado recear diante duma tal ou qual massa de retrógrados e maus?  Devia entrar de fronte erguida! E eis o que me tornou assim tão feliz! É que minutos depois já havia eu me convencido que não existe absolutamente essa tal ou qual massa retrógrada e má, mas que todos são, todos somos substância viva!  Assim, por que continuar eu preocupado, arredio, temendo já agora apenas o meu feitio absurdo? Meu? Só meu? Estamos todos fartos de saber que somos absurdos, superficiais, que temos maus hábitos, que somos maçantes, que não sabemos encarar as coisas, que não compreendemos coisíssima nenhuma! Somos todos assim, nós, eu, eles, aqueles, estes, todos! E não ficam ofendidos por lhes estar eu dizendo no rosto, que são, que somos absurdos? Estão? Mas é que também assevero que somos substância esplêndida! Querem que eu lhes diga uma coisa? A meu ver às vezes ser absurdo não deixa de ser bom. Com efeito, é melhor até. Torna mais fácil nos perdoarmos uns aos outros, é mais fácil do que ser humilde. Não é possível a humanidade compreender tudo, imediatamente, não é possível começar logo com a perfeição! Para atingirmos a perfeição, devemos começar por uma grande ignorância bem difusa! Tudo que é compreendido depressa carece de compreensão eficiente. Digo-lhes isto porque por mais que se haja entendido e compreendido muita coisa, muitíssima mais ainda há a ser compreendida com eficiência essencial! Mas agora caio em mim: não se teriam molestado por um criançola como eu lhes dizer tais coisas? Claro que não! Bem sabem todos aqui de que forma revelar e perdoar os que os ofendem e os que não os ofendem. Sim, sempre é mais difícil perdoar quem não nos ofende, pois tal perdão tem que ser duplo, para a  inocência alheia e para a injustiça de nosso equívoco, já que erradamente supusemos nos ter advindo dano. Eis o que eu esperava de gente sã, eis o que eu ansiava por declarar quando comecei a me exprimir, não sabendo ser claro... O senhor está rindo, Iván Petróvitch? Cuida que ao entrar aqui eu estava com prevenção por causa deles, de quem passo por paladino, tido como sou por um democrata, um advogado da igualdade? (Riu de forma crispada. Já vinha entrecortando os períodos com acento de riso prazeroso). Não, não era isso. Meu medo era por todos nós aqui juntos. Pois se eu próprio sou um príncipe, de antiga família! Se me vejo sentado entre príncipes! Falo, para salvar a todos nós, para que a nossa classe não pereça em vão nas trevas, sem realizar nada, tendo recebido tudo e tudo tendo perdido! Por que hei de eu desaparecer e dar passagem a outros, quando posso permanecer na vanguarda e ser dos principais? Já que estamos na frente, urge sejamos os chefes! Tornemo-nos servos para sermos condutores!

Fez menção de se levantar da poltrona mas o velho dignitário o conteve de novo embora o olhasse com uma inquietação constante".

 O príncipe, ou o idiota continua então, com a sua receita de felicidade.

" - Tenham paciência, ouçam! Sei que não está direito que eu esteja falando. Melhor dar um exemplo, fica mais claro!... Melhor começar... e já comecei... e... e... pode alguém ser deveras infeliz?  Posso eu por exemplo, me considerar infeliz só porque sou doente, só por causa do meu caso tão triste? Mas se posso ser feliz! Palavra que não entendo como é que existe gente que ao passar por uma árvore não se sinta feliz em vê-la! Como pode uma pessoa conversar com outra e não sentir felicidade em amar esta outra pessoa? Estão entendendo? O que digo é certo, exato, nítido! Só que não consigo me expressar certo... E que de coisas inefáveis deparamos a cada instante, a cada passo, tantas e tais que mesmo o homem mais desesperançado tem que se sentir feliz, pelo menos ao dar com uma delas! Que nossos olhos batam no rosto de uma criança, que nossos olhos se deslumbrem diante do nascer do sol, que se abaixem para ver como a erva cresce! Isso não chega para dar felicidade? E se nossos olhos dão de chofre com uns olhos que nos amam?!...

Ergueu-se por um instante, enquanto falava. De repente o ancião o olhou estupefato, sendo Lizavéta Prokófievna, erguendo s braços, aturdida, exclamou: 'Deus do Céu!', pois fora a primeira a perceber a terrível surpresa.

Nisto, Agláia se precipitou donde estava para ele e ainda chegou a tempo de tomá-lo nos braços, ouvindo com terror, a face repuxada pela angústia, aquele uivo selvagem do 'espírito que dilacera e rasga um desgraçado'.

O doente jazia agora sobre o tapete e alguém se apressou em lhe colocar uma almofada sob a cabeça

Quem poderia esperar uma coisa destas?"

Dostoiévski sofria de ataques epiléticos. Estes ataques, conforme ele mesmo nos conta, sempre eram antecedidos de momentos de extrema lucidez. Coisa de instantes.

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