segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Temas em debate. I. O liberalismo: uma contextualização e afirmação de princípios.

Originalmente este texto é um trabalho acadêmico que escrevi em 1998, no mestrado em educação - História e Filosofia da Educação, na PUC/SP. Depois foi publicado no Caderno Pedagógico nº 2, da APP-Sindicato, em março de 1999. Não irei modificá-lo. Vou apenas desmembrá-lo em suas cinco partes, a saber: I. O liberalismo: uma contextualização e afirmação de princípios; II. A social democracia; III. O neoliberalismo; IV. As políticas educacionais do neoliberalismo; V. O neoliberalismo e o futuro da democracia, junto com as considerações finais. O texto ganha relevância pelo tempo sombrio que já estamos vivendo e que tende a se agravar. Deixo as epígrafes e retiro a apresentação que versava sobre a proposta de trabalho, uma apresentação dos temas acima referidos.


O Liberalismo: uma contextualização histórica e afirmação de princípios.

O mercado produz desigualdade tão naturalmente como os combustíveis fósseis produzem a poluição do ar. Eric Hobsbawn.

Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e passagens de grande importância na história do mundo, ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Marx (18 Brumário).



Macpherson inicia o seu livro A democracia Liberal - Origens e Evolução com um interessante questionamento: "Devemos pois considerar a democracia liberal tão perto do fim a ponto de esboçarmos desde já suas origens e evolução? A breve resposta - prejulgando as razões que apresentaremos é "sim", se tomarmos a democracia liberal como significando, o que de um modo geral ainda significa, a democracia de uma sociedade de mercado capitalista (não obstante as modificações que essa sociedade apresenta com o advento do estado de bem-estar); mas a resposta é "não necessariamente", se por democracia liberal entendermos, como John Stuart Mill e os liberais democratas éticos que o acompanharam em fins do século XIX e inícios do século XX, uma sociedade empenhada em garantir que todos os seus membros sejam igualmente livres para concretizar suas capacidades. Infelizmente, a democracia liberal pode significar ambas as coisas" (Macpherson, 1978, p. 9).

Tomamos esta citação para iniciar o nosso trabalho para dizer que não existe uma única forma de interpretar o pensamento liberal e também para situar duas importantes matrizes teóricas, na expressão concreta e expansão deste pensamento. Esta observação inicial é fundamental, tendo em vista que uma das nossas hipóteses de trabalho pretende situar as concepções do neoliberalismo como uma retomada do significado de uma sociedade de mercado capitalista, após o mundo ter enveredado pelos caminhos do estado de bem-estar, concepção esta fundada no pensamento de John Stuart Mill. Só para contrapor, poderíamos fazer uma afirmação, também inicial, de que a sociedade de mercado capitalista encontraria a sua raiz no pensamento de Adam Smith.
1776. O marco teórico legitimador do capitalismo


Por esta exposição inicial, já sabemos que o liberalismo não é uma expressão em torno da qual haja consenso e nem é o mesmo em seu processo de estruturação e muito menos em sua expansão. Podemos contudo afirmar que o liberalismo nasceu junto com o modo de produção capitalista, sendo o liberalismo a sua expressão teórica, um esforço de legitimação de seus princípios e uma tentativa de sua universalização.

Historicamente, está vinculado à transição entre o decadente modo de produção feudal e a constituição e consolidação do modo de produção capitalista. No esforço legitimador da nova ordem burguesa, o liberalismo será mostrado como uma ordem natural e necessária, em cima da qual se construiu um mundo de progresso, de liberdade e de grande desenvolvimento para a humanidade. Assim, o liberalismo se constitui em uma visão de mundo em que o indivíduo é visto como um portador de direitos, naturais e inerentes à sua condição humana, e que só podem ser expressos, ou só se manifestam em estado de absoluta liberdade.

Estes direitos naturais e inerentes ao indivíduo são independentes e anteriores a qualquer organização social. Com esta afirmativa partem da precedência do direito natural sobre o direito positivo e em consequência, do primado do indivíduo sobre o Estado, subordinando a organização deste aos interesses dos indivíduos e na salvaguarda absoluta da individualidade. Nesta concepção, os interesses políticos são submetidos e subordinados à ordem econômica.

No livro de Dewey (1970) Capitalismo, liberdade e cultura, em seu capítulo primeiro - A história do liberalismo, aparece uma interessante síntese do pensamento liberal em que vou me pautar para trazer ao presente o pensamento de Adam Smith, principal articulador da sociedade de mercado.

Smith sustenta que a atividade dos indivíduos, libertos das restrições políticas, se constituem na principal fonte de bem estar social e a fonte única do progresso. Sustenta a ideia de que cada indivíduo busca melhorar a sua própria condição e o consegue através de seu próprio esforço. Assim, sem nenhum plano ou propósito previamente estabelecido, o bem estar coletivo seria atingido pela soma dos esforços individuais convergentes. A dinâmica do mercado, com a liberação das forças produtivas, aumentaria a produção e passaria a ocorrer uma espiral sem fim, de mudanças que permitiriam um avanço social e um ganho pessoal, sob guia da "mão invisível" e que resultaria em grandes benefícios para toda a sociedade.

Dewey faz um importante alerta para as condições históricas presentes na formulação do pensamento de Smith, como a inexistência de condições de exercício de liberdade, tanto no campo econômico quanto no campo político. No campo econômico em virtude do mercantilismo e no político, em virtude do absolutismo. Por outro lado ainda, tem que se ter presente que estamos no início do primeiro grande avanço industrial, o que confere ao mercado características bem específicas, dentro do estágio do capitalismo concorrencial.

Smith dá para as leis econômicas uma configuração, não de natureza física mas de natureza humana, conferindo-lhes assim também, um caráter moral. É da natureza humana, é do próprio instinto humano, lutar para melhorar a sua condição de vida pelos impulsos naturais da troca. Assim se estabeleceriam relações mútuas que regeriam a estruturação da sociedade. Estas relações se constituiriam numa interação positiva entre os indivíduos. Por que então a existência do Estado? Smith defende a sua existência, exatamente para que a economia de mercado pudesse ser implementada, sendo necessário para isto a destruição do estado feudal, tarefa que caberia ao Estado.

O Estado preconizado por Adam Smith seria aquele que garantiria o exercício da liberdade e que criaria a estrutura legal dos princípios de mercado e da garantia da propriedade privada. A preocupação com o Estado, no entanto, é grande. O seu tamanho e as suas funções precisariam ser bem delimitadas. Em seu livro A Riqueza das Nações, publicado em 1776, no volume II, capítulo I, encontramos praticamente a delimitação destas funções, quando fala sobre "Os gastos do soberano ou do Estado". Este capítulo se divide em quatro partes: Os gastos com a defesa; os gastos com a justiça; os gastos com as obras e as instituições públicas e as despesas com o sustento da dignidade do soberano. Na parte dedicada aos gastos com as obras e com as instituições públicas, ele abre três artigos, dos quais o primeiro se ocupa com a questão de facilitar as relações comerciais; o segundo é dedicado aos gastos das instituições para a educação da juventude e o terceiro sobre os gastos das instituições destinadas  à instrução das pessoas de todas as idades.

No artigo sobre os gastos das instituições para a educação da juventude, aparecem princípios importantes de serem observados, como os de que os indivíduos devem cobrir os próprios gastos, remunerando seus mestres; que quando isto não ocorre, a oneração não deve cair sobre a receita geral do país, mas sobre algum rendimento local ou provincial; que o empenho do professor é proporcional à necessidade e que este empenho desaparece quando a sua remuneração provém totalmente de dotações; que os professores formam corporações, julgando-se a si próprios, a liberdade de escolha do colégio em que o aluno queira estudar, entre outros.

Adam Smith fornece as bases para o chamado pensamento utilitarista, ou o pensamento liberal do século XIX, em que o conflito de classes já irá estar presente. James Mill e Bentham estruturam o Estado burguês diante do conflito de classes, embora a doutrina liberal negue a sua existência, aceitando contudo, a naturalidade da desigualdade. Este Estado burguês seria necessário, segundo os utilitaristas para proporcionar igualdade e segurança; igualdade de oportunidades no mercado e segurança para a propriedade. Especialmente Bentham teve tudo a ver com as mudanças na lei e na administração pública.

Depois da análise da sociedade de mercado, sobre cujo fim próximo Macpherson diria "sim", vamos ao seu "não necessariamente", passando a ver o liberalismo que tem a sua vertente em John Stuart Mill. Macpherson apresenta o homem do utilitarismo benthamista como um apropriador e consumidor e o preconizado por Stuart Mill, como alguém que tenha possibilidades de desenvolver, exercer e desfrutar de suas capacidades. Enquanto a vertente utilitarista aceitava uma sociedade de mercado capitalista sem reservas, Stuart Mill lhe faz inúmeras.  Considerava a teoria utilitarista desprovida de espiritualidade e de ausência de humano e as suas proposições não tão "evidentes". Bentham confundia prazer e utilidade com riqueza material e, portanto, uma maior felicidade seria adquirida com a maximização da produtividade. Stuart Mill inseria diferenças qualitativas nos prazeres materiais para atingir os prazeres superiores. Assim o máximo de prazer não estaria no máximo de produtividade, mas no propiciar meios para que os indivíduos se desenvolvessem e considerava que a distribuição da riqueza existente em sua época, não permitia que a maioria dos membros da classe trabalhadora pudessem desenvolver as suas capacidades. Não negava os princípios fundamentais do liberalismo - como a propriedade, por exemplo - que considerava como uma recompensa ao esforço, vendo nela restrições e propondo limitações, pelos seus vícios de origem, geralmente a violência em sua conquista. Acreditava também nos "contratos" como regulação no conflito capital x trabalho e via ainda a situação de inferioridade da classe trabalhadora nesta relação.

Outra questão fortemente presente em Stuart Mill é a questão da democracia e a importância do voto. Não defendia o voto universal por temer um governo de classe e, por isso, tanto limitava o direito ao voto como lhe atribuía proporcionalidade, com pesos diferentes. Certamente aparece aqui a ideia tão fortemente presente na constituição da democracia liberal que é a da presença de uma elite desinteressada e bem intencionada à frente dos governos, para que estes não sucumbissem frente a apelos demagógicos das maiorias, que cada vez mais começavam a se organizar. Considerava que a sociedade moldada pelos princípios absolutos da sociedade de mercado jamais viria a produzir cidadãos livres, pois o espírito que anima esta sociedade é o de construir a fortuna material de cada um, e que o governo seria um mero comitê executivo de uma sociedade sedenta de riquezas, o que barraria, por completo, o bem-estar comum entre a humanidade.  Via uma clara incompatibilidade entre a economia de mercado e o igual desenvolvimento dos indivíduos.

Stuart Mill lança no liberalismo o dissenso e o conflito. Outros agentes devem ser intervenientes na estruturação da sociedade humana, mais visíveis do que a "mão invisível" do mercado. Em sua expressa vontade de que todos desenvolvessem suas capacidades, defendeu a implantação de uma educação livre e não dogmática para todos. É ele hoje, especialmente após a queda do socialismo real, um autor retomado inclusive pelas esquerdas, o que é visto por Bobbio com muita alegria: "Que dois intelectuais de esquerda (os editores italianos de Sobre a liberdade) tenham relido com adesão um dos clássicos do liberalismo e aconselham esta leitura a seus companheiros de estrada, é um fato com o qual posso apenas me alegrar. Sinal de que a desconfiança (e a ignorância) recíproca entre as duas culturas (a liberal e a socialista) está para terminar" (Bobbio, 1997, p.109).
Os fundamentos éticos e democráticos do liberalismo.


Sei que nem Bobbio e nem esta sua afirmação se constituem em unanimidade, assim como o próprio Stuart Mill é apontado por uns como um elitista e conservador e por outros, como um grande liberal de vocação democrática.

Para preparar o passo seguinte deste trabalho, lanço uma pergunta sobre os desdobramentos de seu pensamento, de que se ele não influenciou na formação econômica, social e política, preocupada com o equilíbrio das forças sociais que geraram o Estado mediador de compromissos de classe.

Para ver mais sobre Stuart Mill. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2015/08/os-fundadores-do-pensamento-liberal-4.html
 

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