sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Temas em debate. V. O neoliberalismo e o futuro da democracia.

Originalmente este texto é um trabalho acadêmico que escrevi em 1998, no mestrado em educação - História e Filosofia da Educação, na PUC/SP. Depois foi publicado no Caderno Pedagógico nº 2, da APP-Sindicato, em março de 1999. Não irei modificá-lo. Vou apenas desmembrá-lo em suas cinco partes, a saber: I. O liberalismo: uma contextualização e afirmação de princípios; II. A social democracia; III. O neoliberalismo; IV. As políticas educacionais do neoliberalismo; V. O neoliberalismo e o futuro da democracia, junto com as considerações finais. O texto ganha relevância pelo tempo sombrio que já estamos vivendo e que tende a se agravar. Deixo as epígrafes.

O NEOLIBERALISMO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

O mercado produz desigualdade tão naturalmente como os combustíveis fósseis produzem a poluição do ar. Eric Hobsbawn.

Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e passagens de grande importância na história do mundo, ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Marx (18 Brumário).



Quero nesta última parte, fazer quatro considerações:a primeira já está feita, e só vamos retomar o questionamento de Macpherson, feito na primeira parte deste trabalho (liberalismo: uma contextualização e afirmação de princípios). Sob qual dos dois liberalismos estamos vivendo hoje? Ficamos com a resposta do próprio Macpherson.
Uma afirmação dos direitos da cidadania e do Estado Democrático de Direito.


A segunda consideração, a tomo a partir das considerações de Atílio Boron, de seu livro Estado, capitalismo e democracia na América latina. O alvo preferido de Boron é Friedman, a quem considera inconsistente, tanto pelo seu aspecto teórico, quanto pelo metodológico. Também apresenta a evidência de se tratar de uma obra doutrinária. A principal crítica que ele lhe faz e, por extensão a todos os neoliberais - além de apontar os vícios de origem da teoria de mercado - é o fato de desconsiderar a sua evolução. Repetir, quase duzentos anos depois, as mesmas coisas ditas por Adam Smith é, no mínimo, um acinte. Se Marx já considerava a economia política clássica vulgar, o que dizer de Friedman a repetir as mesmas coisas, sob outros condicionantes históricos. O capitalismo ultrapassou rapidamente a sua fase concorrencial para chegar à sua fase monopolista e, no entanto, neste mesmo mercado encontram-se homens livres para realizarem a troca, trazendo um, o capital e o outro, o trabalho. Acrescente-se que esta passagem para o capitalismo monopolista foi feita com muita violência e com muito sangue.

Depois de descrever os avanços democráticos advindos da social democracia, vista por ele como uma recomposição capitalista - que se caracterizou, essencialmente, por uma avanço nas demandas sociais, possíveis pela extensão da democracia, pela via da sociedade civil - considera os discursos de Friedman e dos monetaristas, ou o neoliberalismo, como o desenlace reacionário que culmina no binômio liberalismo econômico/despotismo político, apontando para este, como o reverso da medalha daquele. Afirma que, o que a burguesia realmente não suporta, não é a questão do Estado, mas a do Estado democrático. O que havia avançado na social democracia era o Estado democrático e muitas decisões saíam da esfera do privado para o público, ou pior, o público invadira o espaço privado de muitas deliberações, como já verificamos. O que o neoliberalismo realmente quer é a volta das deliberações para o domínio do privado, reduzindo o tamanho do Estado a tal ponto de confundi-lo com o aparelho burocrático da burguesia, ou seja, o governo. Seguramente que, retirar a esfera de decisões do Estado e transferi-las para o mercado, ou seja, do público para o privado, não é possível sob um sistema democrático. Por isso a obsessão neoliberal da alternativa única da sociedade de mercado.

A terceira consideração, em parte já esboçada na segunda, a tomo a partir de Adam Przeworski, retirada do seu livro Capitalismo e social democracia (Companhia das Letras, 1995). Para ser mais preciso, da parte final do capítulo "O capitalismo na encruzilhada", onde o autor faz uma análise da economia de mercado, apontando para o fato de ser este o projeto político do neoliberalismo. Aponta que, mais do que um projeto político, é um projeto revolucionário, a conclusão da revolução burguesa, que em sua primeira parte se libertara da ordem feudal e que agora busca a liberação dos compromissos gerados pelo sufrágio. Vamos a um esforço de raciocínio e de síntese de seu pensar.
Um clássico sobre o tema da social democracia.



Em todas as sociedades existem decisões tomadas na esfera pública e na esfera privada e estas decisões causam, ou um impacto público, ou um efeito privado. Nenhuma decisão causa tantos impactos públicos quanto as decisões sobre investimentos econômicos. Estes, no capitalismo, pela instituição da propriedade privada, são tomados no espaço privado, embora os seus impactos sejam, de todos, os mais públicos. Todo o projeto político do neoliberalismo é o de deixar para o mercado a determinação sobre os investimentos. Portanto, decisões tomadas na esfera do privado, onde se encontrarão indivíduos - uns investidores - tendendo para a maximização dos lucros e outros - consumidores - tendendo para a satisfação máxima de suas preferências. Esta é a lógica do mercado que, segundo os neoliberais, não pode sofrer interferências. No sistema político democrático, no entanto, não prevalece esta lógica. Na democracia - mais do que um indivíduo - o ser humano é considerado um cidadão, isto é, seres  marcados pela igualdade e, nestas condições, as decisões sobre o investimento e sobre a distribuição passam a ser responsabilidade das instituições políticas (da esfera do público) e não do mercado (da esfera do privado).

Isso foi o compromisso de classes da social democracia. Esse compromisso contemplou estes dois aspectos: o da distribuição de renda e o da alocação de investimentos. O que é o neoliberalismo? Uma brutal rejeição para que se decida na esfera do público sobre os investimentos e sobre a distribuição de renda. E isso pode ser feito sob o império da democracia? A resposta parece óbvia. O que o neoliberalismo quer, é se livrar de qualquer compromisso que retire a lógica da acumulação e dos investimentos da exclusividade dos agentes privados. Este projeto passa pelo desmantelamento de toda a organização das classes trabalhadoras e da sociedade civil.

Só para concluir, no espaço público, afloram as contradições de classe, enquanto que no privado, aflora a ideologia das liberdades de mercado, do proprietário do capital e do proprietário do trabalho.

Przeworski conclui que esta sociedade é possível, como o foi no Chile, sob o regime da sangrenta ditadura militar, e faz conjecturas sobre o futuro dos pobres, de viverem em áreas isoladas ou confinadas.

A quarta e última consideração a tomo de Bobbio, de seu O futuro da democracia, onde faz  uma constatação histórica. Inclusive pergunta se trata-se de uma progressão ou de uma regressão. Afirma que, primeiramente, a ofensiva dos neoliberais foi o socialismo, depois o Estado de bem-estar, da social democracia, e que agora se volta simplesmente contra a democracia.

Quatro considerações com a mesma conclusão. A incompatibilidade da convivência entre o neoliberalismo e a democracia.

ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES.

Creio não ser necessário fazer uma longa conclusão. Apenas ressaltar a importância do estudo teórico destas questões e retirá-las  do campo do senso comum. Aliás, é grande o esforço liberal em transformar as suas verdades no senso comum das massas.  Creio que as mais importantes questões a destacar são as finais. Houve um avanço na democratização da sociedade, mas na primeira oportunidade que a burguesia teve, liquidou estes avanços.  É lamentável que, ao final do século XX, tenhamos uma regressão tão grande no que se refere aos avanços da democracia e das conquistas, no campo dos direitos da cidadania.

Concluo, com a certeza de que só a democracia permite avanços coletivos para a humanidade e que a tentativa mais próxima de ampliar os espaços públicos, sob o sistema capitalista, foi tolhida pelo neoliberalismo/neoconservadorismo, exatamente na retomada dos princípios de origem deste sistema: a sociedade de mercado e a de tomadas de decisões que dizem respeito ao público, no âmbito do privado.

Resta reafirmar, diante do exposto, a fé nos princípios que combinem o socialismo com a democracia. Caminhos?  Por onde andar?

Termino citando o poeta espanhol Antonio Machado: Caminante, no hay camino. Se hace camino al andar.


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