segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Patrimônio. Philip Roth.

O livro de Philip Roth, Patrimônio, tem na capa uma nota explicativa interessante - "uma história real". E é verdade. O consagrado autor descreve os anos finais da existência de seu pai, que aos 86 anos, se vê acometido de graves doenças, como um tumor no cérebro e outras, quase todas decorrentes do tumor e da idade. A narrativa é dramática mas em momento nenhum perde boas doses de humor.  Como é que um livro desses ganha o título de Patrimônio?  Encontrei a explicação, já na segunda metade do livro.
A morte do próprio pai. O tema deste livro. Por isso, uma história real.
Creio que a impotência e o medo de incomodar os outros seja uma das mais graves situações que um paciente enfrenta, junto com as suas doenças. Deve ser uma vergonha sem fim, o fato de sentir-se inútil e impotente. Herman Roth tem uma paralisia facial provocada por um tumor e se encaminha para o seu desenlace final. Ele precisa de cuidados. Estes cabem, especialmente ao filho escritor, que em meio a isto sofre, ele próprio, um colapso cardíaco quase fulminante.  Em momentos finais, memórias em retrospectiva passam a ser o grande tema. 

Após uma verdadeira calamidade ocorrida no banheiro, com sujeira para todo lado e depois que o autor faz uma limpeza provisória e de ter enfiado toda a roupa suja numa fronha ele descreve a situação e chega à conclusão sobre o que seja, de fato, o patrimônio: " Levei a fronha fedorenta para baixo e a pus num saco de lixo preto que fechei bem fechado, jogando-o no porta-malas do carro para deixar na lavanderia. E, agora que a tarefa fora concluída não podia estar mais clara para mim a razão pela qual aquilo era certo e era o que tinha de ser. Aquilo era o patrimônio. Não porque limpá-lo simbolizasse alguma outra coisa, mas porque não simbolizava nada, porque era nada mais, nada menos do que a realidade existencial nua e crua. Ali estava o meu patrimônio: não o dinheiro, não os tefilins, não a tigela de barbear, mas a merda". Se não estivesse escrito, eu teria que dizer, que o texto é profundamente existencialista.
A descrição do ocaso de uma existência. No caso, a do próprio pai.
Reminiscências e sofrimento se intercalam no livro. A sensibilidade e o cuidado sempre estarão presentes, orgulho e altivez, mesmo quando tudo conspira ao contrário, também. Descrever o ocaso de um ser humano, ainda mais quando este é o próprio pai, não deve ser tarefa fácil para nenhum escritor, por mais experiente e provado que ele seja.

As reminiscências se voltam para a infância difícil de imigrantes judeus poloneses, as discriminações sofridas na vida profissional, impostas pela condição judaica, a vizinhança e as transformações que nela ocorrem  e o esforço de todos na realização de seus sonhos. A superação na vida profissional de um corretor de seguros e a busca de uma estabilidade financeira na velhice, que foi afinal conseguida, são os grandes temas.

Os sofrimentos maiores começam a se intensificar quando aparece uma paralisia facial parcial, os diagnósticos em torno de sua causa, a descoberta de um tumor craniano, a cegueira quase total de um olho e a necessidade de cirurgia de catarata no outro, a conversa com os neurocirurgiões sobre as possibilidades frente ao tumor e o esvair-se da vida como consequência de tudo isso, somado com o ciclo da vida que chega ao seu final. Decisões precisam tomadas. O que é prioritário? Manter a visão de um olho ou extrair o tumor? Vale a pena extrair o tumor, se coletar material para a biópsia já é quase pior do que morrer. Atenção redobrada, cuidados e muita sensibilidade na fase final da vida, quando se é tão indefeso, quanto na fase inicial são os outros componentes do livro.
Patrimônio: "Não é o dinheiro, não os tefilins, não a tigela de barbear, mas a merda.

Li este livro, enquanto estive em repouso da fratura de uma costela. Embora nada grave, as coisas, a necessidade, a atenção e o cuidado se revestem de um significado mais profundo. Uma tossida, uma saliva engolida de forma errada, um ar que não se solta, por um pum aprisionado, passam a ser incômodos profundos e a dependência dos outros então passa a ser um ato supremo de humildade. Mas vamos a cena final.

"Depois disso, só me restou seguir sua maca até o quarto onde o puseram e me sentar ao lado da cama. Morrer dá trabalho, e ele era um trabalhador. Morrer é pavoroso, e papai estava morrendo. Peguei sua mão, que ao menos eu ainda sentia como sendo sua mão, afaguei sua testa, que ao menos ainda parecia ser sua testa, e lhe disse todo tipo de coisas que ele não podia mais registrar. Por sorte, de tudo que eu lhe disse nessa manhã, nada havia que ele não soubesse". Ternura ímpar.

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