sexta-feira, 14 de novembro de 2014

A Desumanização. Valter Hugo Mãe.

Não é fácil ler Valter Hugo Mãe. A sua leitura exige leitores. Não sei se o livro A desumanização é um romance ou um longo poema. Com certeza, o livro é de uma beleza extraordinária e rara. Dá até para perguntar: Não seria a ausência da beleza a própria desumanização. O livro tem muito pouco de história atraente a impulsionar para o final da história, mas a cada nova página se descortina um linguajar poético cada vez mais belo e questões de filosofia a provocar (pro- vocare - chamar para) para a reflexão e o debate. Um livro profundamente instigador.
A desumanização. Um longo poema e profundas instigações filosóficas. Beleza rara.

Ao final do livro tem uma nota do autor. Nela basicamente ele faz os agradecimentos. Mas antes deles tem uma nota explicativa que dá pistas para uma maior compreensão do livro. "Quando nasci já o meu irmão Casimiro havia falecido. Durante a infância imaginava-o à minha imagem, um menino crescendo como eu, capaz de conversar comigo partilhando os mesmos interesses. Sabia, embora, que estava deitado sob a terra, e pensava que a palavra coração era da família da palavra caroço, uma semente. Achava que os meninos mortos faziam nascer pessegueiros porque os pêssegos tinham pele. O primeiro pêssego que comi foi em idade adulta".

A desumanização tem como narrador a menina Halla. Ela é gêmea de Sigridur que morre na mais tenra idade e, a partir daí, tudo passou a se dividir pela metade. Halla imaginava a irmã plantada e ficava imaginando, em vez de adormecer. Desde cedo ela compreende que o inferno não são os outros. Pelo contrário, eles são o Paraíso. Desde cedo percebe que o homem sozinho seria apenas um animal e que a humanidade não começa exatamente em ti, mas naqueles que te rodeiam. Com a morte da irmã teve que apreender a conviver com a solidão.
Valter Hugo Mãe lançando A desumanização em Curitiba. Capela Santa Maria.


Estas primeiras provocações me levaram ao belo livro de filosofia, de Albert Jacquard, Filosofia para não filósofos, para o tema da alteridade, onde está dito: "Só consegui dizer 'eu', graças ao 'tu' que ouvi. A pessoa que sou não é o resultado de um processo interno solitário; só pôde construir-se encontrando-se no foco dos olhares dos outros. Não só essa pessoa é alimentada com todas as contribuições dos que me rodeiam, mas sua realidade essencial é constituída pelas trocas com eles". E aí vem a belíssima conclusão: "Eu sou os vínculos que vou tecendo com os outros". Valter Hugo Mãe já tinha deixado este conceito muito claro no seu outro livro O filho de mil homens. Encontros são somas e multiplicações. Encontros são a humanização. Agora temos o oposto. Com a perda "tudo passou a se dividir pela metade". Os não encontros, as perdas da possibilidade do encontro com os outros são, assim, a desumanização.

Em A desumanização a perda maior se deu com a morte, a morte da irmã gêmea, ainda criança. Inimaginável haver perda maior. Outras mortes se dão pela ausência ou pelo simples distanciamento. Neste caso está a mãe e especialmente a tia. Seriam elas as desumanizadas? Os encontros se dão com o pai, com Thurid, a que toca o órgão na igreja, e com Einar, com quem, apesar das advertências da irmã, estabelece relações de amor. Sigridur queria que a irmã namorasse apenas príncipes imaginários, de rara beleza. Mas Halla descobriu que ela amava mesmo era Einar, mesmo não sendo príncipe, nem belo.
Valter Hugo Mãe. Beleza poética e provocações filosóficas.


A desumanização é representada também pela tristeza e pelos desgostos. "Talvez a tristeza fosse um modo de envelhecer. O tempo também se conta pelos desgostos". Rara sensibilidade.  A humanização mais bela se deu com o pai. Ele era um poeta e tinha livros. Os livros também seriam os outros com quem estabelecemos relações?  Sim. "Os livros eram ladrões. Roubavam-nos do que nos acontecia. Mas também eram generosos. Ofereciam-nos o que não acontecia".  Segundo o livro já citado de Jacquard os livros povoavam a sua solidão: "Mas tive a sorte de povoar essa solidão com todos os autores encontrados nas prateleiras das bibliotecas e que foram bastante amáveis comigo; nunca zombaram de mim, levaram-me a desejar contato com os seres de carne e osso...."

Não ler também representa a desumanização. "Não ler, pensei, era como fechar os olhos, fechar os ouvidos, perder sentidos. As pessoas que não liam não tinham sentidos. Andavam como sem ver, sem ouvir, sem falar". O não ler, ou o escrever também representa uma desistência, uma partida. Era o que estava acontecendo com o pai. "Sabes, acho que o meu pai vai desistindo porque já aceitou que parti. Fiquei com pena de não ter um poema para me dar. Significa que já não os escreve. Se não escrever, ele não falava nada do mundo. Fica perdido".
A Islândia serve de cenário para o livro A desumanização. A Islândia é Deus.

A humanização também ocorre pela música. Ela é representada por Thurid, quando ela variou com as variações, quando brincou. "A ridícula velha, gorda e obstinada, a ter visões noturnas, semelhantes aos mais imprestáveis lunáticos, tocava as variações de verdade [...]. Quando o fez a igreja estava habitada por Bach [...]. E a Thurid tocava e outra vez murmurava e, subitamente, entendemos muito bem. Dizia: azul, azul, negro, branco. A Thurid achava que pintava. Achava que as teclas eram pincéis e via, certamente nas costas dos olhos, telas grandes de caleidoscópios maravilhosos. Quando ouvimos claramente as cores que enumerava, vimos também. Pudemos fugazmente ver e fundimos a cor e o som num arrepio de grandeza que aconteceu a todos. Estávamos iguais".

Ao final uma cena de grandeza. Halla fugira para as montanhas, pensando em Einar: "Percebi absolutamente que o amava. E levava dúvida nenhuma de ser amada. Teria a vida inteira para para lidar com esse sentimento. Sabia que me perdoaria. Pensei. Quem não sabe perdoar, só sabe coisas pequenas". O cenário do livro é a Islândia e Islândia é Deus.

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