sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Alteridade. Albert Jacquard.

Como o livro Como conversar com um fascista - Reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro, de Márcia Tiburi trabalha muito com o conceito de alteridade, com a relação que estabelecemos com o outro, com o outro que me constitui, resolvi trazer para o blog, as belas reflexões contidas no livro Filosofia para não filósofos, de Albert Jacquard, com participação de Huguette Planès, sobre a palavra alteridade. Resolvi transcrever o texto, pela sua rara beleza e importância e por não ser tão fácil de localizá-lo. A apresentação do texto é feita sob a forma de diálogo, com as perguntas sendo feitas por Hugette Planès e as respostas dadas por Albert Jacquard, começando por uma bela frase de epígrafe.
O belo livro de Albert Jacquard, Filosofia para não filósofos.
ALTERIDADE: "Aprendamos a viver juntos como irmãos; caso contrário, vamos morrer como idiotas". Martin Luther King.

Inúmeras gerações de estudantes de filosofia aprenderam a célebre frase de Sartre: "O inferno são os outros". Como é que o senhor reage a isso?

Observando que, longe de expressar a opinião do autor, essa frase não passa de uma réplica, em contexto, em contexto bem determinado, inserida em uma peça de teatro. Representa apenas a constatação de uma personagem que inicia sua estada no inferno. Se tivesse sido recebida no paraíso, sem dúvida, teria declarado: "O paraíso são os outros". Mas se tivesse continuado sua vida terrestre, deveria ter constatado que "o inferno é ser excluído pelos outros". Os outros não são nosso inferno pelo fato de serem outros; criam nosso inferno quando não aceitam estabelecer relações conosco.
Acredito na necessidade da relação com o outro não apenas para ser feliz, mas principalmente para me tornar consciente.

Está querendo dizer que o senhor não poderia existir sem os outros?

Com toda a certeza eu poderia existir sozinho, mas não poderia ter conhecimento disso. Minha capacidade para pensar e dizer "eu" não me foi fornecida pelo meu patrimônio genético; o que esse me deu era necessário, mas não suficiente. Só consegui dizer "eu", graças aos "tu" que ouvi. A pessoa que sou não é o resultado de um processo interno solitário; só pode construir-se encontrando-se no foco dos olhares dos outros. Não só essa pessoa é alimentada com todas as contribuições dos que me rodeiam, mas sua realidade essencial é constituída pelas trocas com eles; eu sou os vínculos  que vou tecendo com os outros. Com essa definição, deixa de haver qualquer corte entre mim e os outros.
No entanto, por definição o outro é "outro".

É justamente porque não é idêntico a mim que o outro participa de minha existência. Uma carga elétrica só é definível em presença de outra carga. É essa coexistência que é fonte de tensão; ela inicia uma dinâmica, a da comunicação. Comunicar é colocar em comum; e colocar em comum é o ato que nos constitui. Se alguém considera esse ato impossível, recusa  qualquer projeto humano.
Evidentemente, ainda tem de ser superadas as dificuldades que transformam cada comunicação em uma façanha. Com toda a certeza, não é possível alcançar uma autenticidade que seja sinônimo de compreensão total. Os meios utilizados para comunicar não podem ser perfeitos. A cadeia: pensamento - frase dita para expressar esse pensamento - frase ouvida - pensamento reconstituído a partir dessa escuta - comporta várias possibilidades de erros ou imprecisões.
A mensagem da contracapa do livro.
Por exemplo, a frase:"O gatinho morreu", na peça de Molière, é o caso limite de uma informação aparentemente objetiva, desprovida de qualquer ambiguidade e que, no entanto, por associação de ideias, provoca inquietações de natureza mais grave do que a morte do gatinho. Com efeito, qualquer frase, mesmo se está resumida a um sujeito, predicado e complemento, é portadora de uma mensagem que a supera, considerando o contexto e a maneira como ela é emitida. Com toda a certeza, contém uma informação, mas participa, simultaneamente, de uma comunicação; o que implica, no mínimo, duas pessoas e, por conseguinte, intervenção simultânea do emissor e do receptor.
Dito de maneira diferente, uma palavra só adquire sentido em um certo contexto, que não pode ser o mesmo, por exemplo, para um jovem e para um adulto. Portanto, é necessário admitir que a ferramenta da comunicação é imperfeita. Não há fórmula para remediar isso, a não ser a consciência dessa dificuldade pelos intervenientes e a vontade de superá-la, ao não confinar o interlocutor nas frases que pronunciou.
Pode-se, no mínimo, esperar que essas dificuldades inerentes ao procedimento de troca não sejam agravadas pela atitude das pessoas em questão. Se a mentira ou a má-fé vierem a se inserir no processo, já não haverá troca, mas manipulação recíproca.

Mentira, mas também humilhação. Não será isso ainda pior?

A primeira condição de qualquer comunicação é, com efeito, o respeito. Respeitar o outro é considerá-lo como uma parte de si, o que fica evidente se aceitarmos a definição: "Eu sou os vínculos que vou tecendo com outros". Desta vez, a ética já não consiste em formular preceitos que teriam caído do céu; é a consequência da tomada de consciência do que somos e daquilo que nos faz ser o que somos.

Jean Jaurès fazia questão de não confundir respeito e tolerância. Acreditava que a palavra tolerância era perigosa, em todo caso, insuficiente, condescendente, inclusive injuriosa: "Vocês são tolerados".

A tolerância é uma atitude muito ambígua ("Para isso, existem casas...", dizia Claudel). Tolerar é julgar-se em condições de dominar, julgar; é ter de si mesmo um conceito o bastante positivo para aceitar o outro com todos os seus defeitos. É necessário tomar um rumo completamente diferente e tomar consciência da contribuição dos outros, que se torna tanto mais rica quanto maior for a diferença em relação consigo mesmo.
É, aliás, a razão pela qual não só valorizo a comunicação entre as pessoas, mas também guardo a maior reserva em relação às tecnologias ditas de comunicação que, na realidade, não passam de meios de informação. Na medida em que traz informação, a informática é preciosa; mas limita-se a fornecer comunicação em conversa, congelada. É incapaz de provocar  os sobressaltos criadores que se reproduzem, naturalmente, em um diálogo verdadeiro, feito não só de silêncios, mas também de palavras.
A própria televisão constitui um meio de informação, isto é, de revestir as coisas de uma certa forma; mas, raramente, um meio de comunicação, ou seja, de por as coisas em comum.De fato, leva antes à supressão de qualquer diálogo já que funciona em mão única. Corremos o grande perigo de ela nos transformar em seres passivos, cuja única reação é zapear, isto é, abandonar o interlocutor, em vez de lhe prestar atenção. Expressar uma ideia é uma atividade difícil que deve  ser exercitada; a TV suprime esse exercício; corremos o risco de nos tornarmos todos mudos, frustrados em sua palavra, e que acabarão saciando suas pulsões através da violência.

É o que se vê, perfeitamente, no caso extremo dos que são relegados para os subúrbios e a quem é negada qualquer verdadeira comunicação.

É claro, não se trata da verdadeira etimologia, mas "banlieue" soa, com efeito, como lugar de banimento. E é verdade que os que vivem aí são colocados fora da cidade, fora da lei, fora da vida.
O essencial lhes é recusado, ou seja, a troca com o outro. Vejamos qual é o cerne do problema de cada um: tornar-se si mesmo. Ora, essa autometamorfose não é realizável a não ser por troca. A natureza deu-nos todos os órgãos necessários para nos tornarmos seres humanos, mas não nos indicou o caminho a seguir. Para realizar essa façanha fabulosa que é a capacidade para saber que existimos, é necessário nos beneficiarmos dos olhares dos outros; é necessário, pouco a pouco, tecer os vínculos que são nossa verdadeira pessoa.
A aldeia, a cidade, a nação deveriam ser os lugares dessa tecelagem, que pressupõe, para cada olhar, a possibilidade de encontrar um outro olhar, o ser humano face a outro ser humano, sem hierarquia, sem vestígio de desprezo.
Como está longe desse ideal o subúrbio que se encontra à volta de nossas cidades! Os jovens veem ao longe as luzes de uma metrópole que os rejeita; brincam de guerra porque compreenderam que a violência é para eles a única saída; picham os muros para que estes se tornem menos sinistros, menos implacavelmente confinantes. Os adultos deixaram de ver a tristeza desses edifícios repetitivos, aceitam o desmoronamento dos sonhos de sua infância.

Na construção de cada um, que lugar o senhor reserva para a solidão?

Solidão: trata-se da mesma palavra para duas situações opostas, a solidão suportada, a solidão desejada.
A primeira é dramática; tenho necessidade dos outros e não há ninguém. Sou como uma chama que se extingue por sufocação, por falta de oxigênio.
A segunda é, em certos momentos, necessária para reencontrar a coerência de todos os materiais que se acumularam, restabelecer conexões e se preparar para novos encontros. Essa solidão escolhida pode ser também a ocasião de um encontro: é o verdadeiro milagre da leitura; que felicidade ouvir Montaigne fazer-nos confidências!

No decorrer de sua vida, em sua adolescência, o senhor sofreu com a solidão?

Eu era certamente tímido, incapaz de me expressar, persuadido de que cada palavra pronunciada por mim seria falsa, obstruída pelo meu corpo, procurando refúgio na solidão, ao mesmo tempo que a achava dolorosa. Mas tive a sorte de povoar essa solidão com todos os autores encontrados nas prateleiras das bibliotecas e que foram bastante amáveis comigo; nunca zombaram de mim, levaram-me a desejar contato com seres de carne e osso, que são mais inquietantes, embora muito mais atraentes do que aqueles de quem só restam as palavras.

No meu livro ainda tenho a seguinte anotação:
A anotação é deste livro maravilhoso do professor Milton Santos.

Alteridade e individualidade se reforçam com a renovação da novidade. Quanto mais diferentes são os que convivem num espaço limitado, mais ideias do mundo aí estarão para ser levantadas, cotizadas e desse modo, tanto mais rico será o debate silencioso ou ruidoso que entre as pessoas se estabelece.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro: Record. 2001 (página 131).


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