quarta-feira, 12 de julho de 2017

O ridículo judicial. Márcia Tiburi.

Vou pedir licença para a Márcia Tiburi e publicar o tópico de número 20 de seu novo livro Ridículo Político - uma investigação sobre o risível, a manipulação da imagem e o esteticamente correto. Esta questão é tão premente que precisa ser mais conhecida. É neste intuito que transcrevo este pequeno ensaio, Ridículo judicial. Quero ainda chamar a atenção para o livro, uma leitura mais do que necessária nestes tempos pós modernos, da era do espetáculo. Já fiz a resenha em outro post.
O extraordinário livro de Márcia Tiburi. Leitura obrigatória para entender o atual momento político brasileiro.

"O ridículo político se tornou evidente em nossa época nas cenas promovidas por alguns juízes, promotores, ministros e outros agentes do sistema de justiça. A judicialização da política,, correlata ao discurso político que a demoniza, é um dos aspectos mais essenciais do ridículo político. Atores jurídicos negam a natureza política do poder enquanto, ao mesmo tempo, a praticam em atos de poder. Há aqueles que, por sincera ignorância, desconhecem que, ao decidir, estão condicionados por valores, preconceitos, ideologias e outros fatores políticos. Por outro lado, a má fé sustenta o discurso da 'neutralidade', que permite velar atuações marcadamente parciais dos atores jurídicos.

Rubens Casara, em Processo penal do espetáculo, definiu bem a 'mutação' sofrida pelo processo penal na sociedade do espetáculo: 'A dimensão de garantia, inerente ao processo penal no Estado Democrático de Direito (marcado por limites ao exercício do poder), desaparece para dar lugar à dimensão do entretenimento. Podemos dizer que é essa dimensão substitutiva que cria as condições de possibilidade para a cultura do ridículo. A naturalização do ridículo na cultura como um todo faz parte também do mundo judicial, ele mesmo disfarçado sob a aparência de algo 'esteticamente correto'.  E não é um exagero dizer que o campo do direito tenha contribuído em muito para isso por meio da burocratização e do ritual judiciário. No que Rubens Casara chama de 'julgamento espetáculo', todos querem exercer bons papéis na trama enquanto vigora o 'primado do enredo sobre o fato'. A mídia ajuda a transformar juízes em heróis, mas sob a condição de que não julguem contra a opinião pública e de que mocinhos e bandidos continuem em seus papéis preestabelecidos.

O caráter espetacular faz parte da história do direito. A monumentalidade dos prédios da justiça e a ostentação pelas vestimentas, togas, becas e capas, cuja origem clerical não deve ser esquecida, combinam com rituais burocráticos, retóricos, em tudo teatrais e em tudo mascarados. A toga busca apontar uma dignidade diferenciada e, ao mesmo tempo, funciona como uma máscara: quem a usa, esconde-se e despersonaliza-se: torna-se o ser diferenciado. O negro da toga, por exemplo, simboliza a indiferença perante as cores, a abnegação, a privação e a castidade. Falas rebuscadas, expressões afetadas, o culto ao palavrório, os tratamentos majestáticos e os olhares de superioridade e altivez são adotados como se todos no campo do direito fossem distintos dos demais seres humanos. O tratamento 'doutor', mesmo para quem nunca fez um doutorado, foi naturalizado por quem é 'bacharel'. Esse tratamento tem origem em um decreto da época do Império que se tornou tão naturalizado quanto anacrônico. A desmedida ridícula passou a valer para quem 'simplesmente' usa paletó e gravata em um país tropical. O valor da vestimenta, seja a toga, seja a roupa de marca, seja a gravata, garante que o ridículo político espetacularizado imita a vestimenta dos poderosos e faz com que cada personagem esteja 'a caráter' para o espetáculo.

Mas podemos ainda colocar a questão do conservadorismo exacerbado, do pedantismo distanciador, da assepsia ideológica, da falsa neutralidade valorativa, da sobriedade em tudo, do discurso moralizante e paternalista, do bacharelismo que desconsidera a realidade social, do dogmatismo acrítico, do medo que cidadãos têm  de desagradar os atores jurídicos que detêm postos de destaque nas carreiras jurídicas, o que atinge, evidentemente a todos os envolvidos em um sistema hierárquico. Por trás desse padrão, talvez se possa perceber o sadomasoquismo elevado à instituição que se repete pelos falsos sinais de poder, tais como solenidades, tratamentos monárquicos, insígnias e saudações típicas das corporações militarizadas.

Enfim, com Zaffaroni, pode-se afirmar a existência de três fontes para o ridículo judicial ligadas à burocratização: o bacharelismo pedante típico da formação jurídica, que tem por objetivo se impor na sociedade a partir da afirmação de ritos e de um conhecimento específico; o comodismo crônico ligado tanto à dificuldade de fazer reflexões quanto a interesses subjetivos inerentes à carreira; e, por fim, a neurose conservadora daquele que se acredita um semideus, um sacerdote acima de qualquer ideologia e preconceito, e que, por isso, deve assumir uma feição conservadora para manter o respeito e a dignidade da função, ou seja, uma vítima da normalização produzida pelo senso comum e pelos meios de comunicação de massa, que constroem a imagem do 'bom juiz' como um herói que não tem limites à realização do que entende por justiça".

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