domingo, 12 de novembro de 2017

A hora da estrela. Clarice Lispector.

Cheguei ao livro A hora da estrela, de Clarice Lispector, pela indicação de livros cobrados para o vestibular, desta vez pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e também da Universidade Estadual de Londrina. O livro, na verdade, é um pequeno livrinho. A primeira imagem que me passou pela cabeça foi a de que estes estudantes levaram vantagem. Que engano! Um dos livros mais complexos que eu já li. Clarice é considerada como uma escritora de "inflexão intimista", mas que neste romance deu "um salto na extroversão". É o que lemos na orelha do livro, escrita por José Castello.
O livro tem apenas 87 páginas, mas é um dos mais complexos que já li. Maravilhoso.

Li o livro lentamente e vi o filme atentamente (filme de 1985 com roteiro e direção de Suzana Amaral). E voltei para a leitura do pequeno livrinho. Cada frase é motivo para uma parada, uma parada para a reflexão. A hora da estrela é a última obra da consagrada estrela da literatura brasileira. O tema do livro é a morte. Ou seria a vida? As dúvidas perpassam toda a obra. Será mesmo que Macabéa viveu? A sua hora da estrela não teria sido a da sua morte, com o fim de uma vida rala, em que dá para dizer que ela não viveu? Ou então, amenizando, que ela não experimentou os sabores da vida? Nem mesmo um beijo ou um abraço. Foi a vida de um "eu" intransitivo, sem nunca ter transitado nos caminhos do amor, a não ser sob a fórmula de um namoro absolutamente ridículo.

Se Clarice, em outros romances "estava de corpo inteiro", neste, "no centro de seus relatos, agora a cena é ocupada por personagens que em nada se parecem com ela", nos afirma José Castello, na apresentação do livro, em suas orelhas. Não sei. Eu, salvo engano, a vi muitas vezes. Mesmo porque todos nós somos Macabéa em nossos múltiplos desamparos. Por mais intensamente que vivamos a nossa vida também tem os nossos momentos de Macabéa. Macabéa tem traços de universalidade.

A mulher e escritora Clarice não assume a narrativa da história. Ela explica, falando de Macabéa: "Sei que há moças que vendem o corpo, única posse real, em troca de um bom jantar em vez de um sanduíche de mortadela. Mas a pessoa de quem falarei mal tem corpo para vender, ninguém a quer, ela é virgem e inócua, não faz falta a ninguém. Aliás - descubro eu agora - também eu não faço a menor falta, e até o que escrevo um outro escreveria. Um outro escritor, sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas". O narrador será Rodrigo S. M.

A desamparada Macabéa nasceu com muitos antecedentes. Era nordestina, alagoana mais precisamente, não conheceu os pais, foi educada por uma tia beata, fez até a terceira série e a tia lhe ensinou a prática da datilografia. Assim documentada enfrenta o Rio de Janeiro, a cidade inconquistável. Arrumou emprego por menos de um salário. Mesmo assim, o seu trabalho não agradava ao patrão. Viveu numa pensão junto com quatro Marias. No trabalho havia a colega Glória. Comia sanduíches e tomava Coca Cola. Era raquítica, pouco se lavava e uma das Marias chegou a reparar em seu cheiro. Ninguém a notava. Ela era invisível. Um "eu" intransitivo.

Nem mesmo a "mulherice" brotou nela, ou apenas, tardiamente. Tinha 19 anos e era virgem. "...Embora a menina não tivesse dado mostras de no futuro vir a ser vagabunda de rua. Pois até mesmo o fato de vir a ser uma mulher não parecia pertencer à sua vocação. A mulherice só lhe nasceria tarde porque até no capim vagabundo há desejo de sol". Um dia arruma um namorado. Um namorado? Olímpico de Jesus. Seria um namoro ou o encontro de duas pessoas em absoluto estado de pobreza? Pobreza material e do espírito. Não havia diálogo, não havia assunto, não havia percepção do eu e do mundo. No livro tem uma página e meia de um diálogo no vazio. Isso irritava os namorados.

Macabéa era curiosa. Se instruía ouvindo a rádio Relógio. Horas, anúncios e cultura. Ouvia coisas que não entendia. Olímpico de Jesus não lhe esclarecia as dúvidas e se irritava mais ainda. Olímpico de Jesus passa a namorar Glória, a colega de trabalho de Macabéa. Ela era substanciosa. Tinha corpo. Se beijavam e se abraçavam. Por Glória, Macabéa chega a uma cartomante. Esta lhe faz perguntas embaraçosas e lê seu triste passado e presente. Lhe anuncia "a hora da estrela", por um futuro brilhante. Pela primeira vez sente o futuro que lhe anuncia um destino. Um namorado estrangeiro e rico.

Ao sair da consulta, exultante em alegria, é atropelada. Também o seu futuro brilhante é interditado pela morte. Mas a morte é apenas um instante. Morreu abraçada a si mesma, em posição fetal, compensando um abraço que nunca recebera em vida. "No fundo ela não passara de uma caixinha de música meio desafinada", ou bem desafinada.

PS. Ao ler o livro, fiquei com uma enorme vontade de ler uma biografia sua. Pela sua leitura a achei uma pessoa muito dolorida. Quando li Morangos mofados de Caio Fernando Abreu, apenas um único parágrafo bastou para dissipar muitas dúvidas minhas. Minhas suposições se confirmaram. Vejamos o que este escritor fala a respeito de Clarice:

"Eu conheci razoavelmente bem Clarice Lispector. Ela era infelicíssima, Zézim. A primeira vez que conversamos eu chorei depois a noite inteira, porque ela inteirinha me doía, porque parecia se doer também de tanta compreensão sagrada de tudo. Te falo nela porque Clarice, pra mim, é o que mais conheço de GRANDIOSO, literariamente falando.  E morreu sozinha, sacaneada, desamada, incompreendida, com fama de "meio doida". Porque se entregou completamente ao seu trabalho de criar. Mergulhou na sua própria trip e foi inventando caminhos, na maior solidão. Como Joyce. Como Kafka, louco e só lá em Praga. Como Van Gogh. Como Artaud. Ou Rimbaud".

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