sexta-feira, 10 de novembro de 2017

O complexo brasileiro de vira-lata.

Muito se tem falado no Brasil sobre o complexo de vira-lata. Por este complexo o brasileiro se consideraria inferior perante outros povos, em especial, perante os mais desenvolvidos. O termo tem a sua origem em Nelson Rodrigues, que o usou em 1950, por ocasião da derrota brasileira, em pleno estádio do Maracanã, que estava sendo inaugurado, frente ao Uruguai, na partida final da Copa do Mundo, realizada naquele ano. Vem do futebol, do perder na própria casa, este termo fortemente carregado de negatividade.

Se fosse restrito apenas ao futebol, este conceito não traria maiores consequências e afetaria apenas os torcedores mais fanáticos. O problema é que ele extrapolou do campo do futebol para se incrustar na política e na economia. Por este conceito nós mesmos nos consideramos inferiores aos países mais desenvolvidos, especialmente, na relação com os Estados Unidos e com os países europeus. Jessé Souza, em seu livro A elite do atraso - da escravidão à lava jato examina as implicações e consequências do termo.
Em A Elite do atraso, Jessé Souza desenvolve o conceito de vira-lata.

Ele inicia distinguindo a evolução histórica do conceito de racismo. Primeiramente ele se voltava apenas contra os negros, sendo determinado, portanto, pela cor. Depois ele evoluiu para o racismo cultural, pelo qual são considerados inferiores, além do negro, também os brancos, que não são calvinistas e que não são empreendedores e vencedores na sociedade aberta do livre mercado. Toda a América Latina passa assim a ser vítima deste novo racismo, o racismo cultural. Esse conceito foi largamente cultivado pela poderosa indústria cultural dos Estados Unidos. A sua tese fundamental é a da superioridade daqueles que se dedicam às atividades do espírito e da inferioridade daqueles que se dedicam às questões do corpo. Um conceito platônico que se universalizou na cultura ocidental.

O termo ganha força entre nós com as interpretações dominantes de Brasil. No livro Raízes do Brasil, que não é um livro de botânica, Sérgio Buarque de Holanda, define o homem brasileiro como o "homem cordial", ou seja, o homem que se move pelo coração, pelo corpo e não pela razão. Assim somos dominados pela sensualidade, pelas paixões, pela preguiça atávica e outros males ainda piores, presentes em nosso corpo. Ao contrário das virtudes do espírito que nos conduzem, pelas asperezas do ascetismo, às excelências do mercado e das atividades políticas. O espírito forma o homem moral e traça o perfil do vencedor.

Outras teorias contribuíram para a afirmação deste conceito. Raimundo Faoro, em Os donos do poder, afirma que o Estado corrupto brasileiro é uma herança do patrimonialismo da monarquia absoluta portuguesa, que impede que as excelências praticadas no mercado ocorram entre nós. Com um Estado inerentemente corrupto nunca conseguiremos vislumbrar um futuro promissor. Surge daí a ideia que beatifica as virtuosidades do mercado e demoniza sistematicamente as ações do Estado, onde faz ninho a corrupção. Estas teorias são ainda complementadas com o conceito desenvolvido por Roberto DaMatta, do "jeitinho brasileiro" e também por Francisco Weffort, o do populismo brasileiro, termo com o qual se demonizam as políticas públicas em favor da população mais necessitada.

Jessé Souza relaciona estas teorias com a operação lava jato, que em seus ataques seletivos e sistemáticos visa apenas governantes comprometidos com políticas públicas e com a defesa das riquezas nacionais, geridas pelo Estado brasileiro. Contra estes e somente contra estes se voltam as investigações e as condenações da lava jato. É preferível, segundo eles, que as nossas riquezas sejam administradas pelos homens superiores, mesmo que estrangeiros, do que pelo Estado brasileiro, hereditariamente corrupto.

Esse é o conceito de vira-lata que nos prejudica. Ele foi criado por teóricos que foram transformados em mitos incontestáveis pelas nossas universidades, editoras e, especialmente por uma mídia, antipopular em sua essência. Esta mídia escancara uma corrupção, a corrupção das percentagens ou a "corrupção dos tolos" na expressão de Jessé, para esconder a verdadeira corrupção, que é a da transferência de nossas riquezas, das isenções fiscais, dos REFIS e das altas taxas de juros praticadas em favor dos rentistas do capital improdutivo.

Esta situação permite que a renda dos brasileiros continue escandalosamente concentrada em favor de 1% de sua população e onde, como indicam os estudos da Oxfam seis pessoas tem a mesma riqueza que cem milhões de brasileiros. Destas teorias também brota o ódio contra aqueles que, pelos mecanismos do racismo cultural, são considerados inferiores. E haja ódio (Vejam o episódio de racismo exalado por William Waack, na Rede Globo).  Quanto a sua riqueza, afagam as consciências com as teorias da meritocracia.

Tudo isso me faz lembrar um livro de Dom Hélder Câmara, que me acompanha desde os anos 1970, O deserto é fértil. Nele, Dom Hélder chama os nossos dirigentes políticos de burguesia consular, isto é, são os cônsules dos interesses estrangeiros, em troca de miçangas para si e a miséria para o povo. É triste ver o povo de um país em que que vive sob o complexo de vira lata. Pena que este conceito não esteja restrito apenas às questões do futebol.

E já que falamos em Dom Hélder, deixo ainda a frase que Jessé Souza escolheu como epígrafe de seu livro A elite do atraso: "Se dou comida aos pobres, todos me chamam de santo. Mas quando pergunto por que são pobres, me chamam de comunista". Até parece, ou tentam fazer parecer, que no Brasil, a sua realidade não tem causas.


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