segunda-feira, 3 de junho de 2013

O Sumiço da santa. - Jorge Amado.

Ler o Sumiço da santa é uma bela introdução a cidade de Salvador, sob todos os aspectos. Eu mesmo consultei o mapa de Salvador e do Recôncavo Baiano, do rio Paraguaçu e das cidades ribeirinhas, várias vezes. Mas a introdução maior é a de ter os primeiros contatos com o feitiço que paira sobre os ares da cidade, ares que emanam das igrejas e dos terreiros de candomblé, numa mistura de fazer e dar gosto. Salvador é a Roma das religiões afro e a língua iorubá, o seu latim. É uma história de feitiçaria em que se misturam os santos católicos com os santos do candomblé.
Um livro de muito humor e ironia, de feitiçaria. Isto é - O sumiço da santa, de Jorge Amado.

O livro, mesmo como introdução, necessitaria de uma apresentação, o que o próprio Jorge faz e que Yvonne Maggie também faz, mas num belo posfácio. Jorge dá poucas pistas. Yvone nos desvenda os principais mistérios, nos quais o romance está envolvido. Comecemos por Jorge. Ele promete "contar a história de Adalgisa e Manela e de alguns outros descendentes de Francisco Romero Perez y Perez com Andreza da Anunciação, a formosa Andreza de Iansã, mulata escura. Nela se narram, para que sirvam de exemplo e advertência, acontecimentos sem dúvida inesperados e curiosos decorridos na cidade da Bahia - noutro lugar não poderiam ter acontecido. [...] Tudo se passou num tempo curto de quarenta e oito horas". Jorge ainda nos conta que o projeto do romance fora anunciado há cerca de vinte anos, sob o nome de A guerra dos santos. No caso Santa Bárbara, a do trovão, e Iansã.

A demora de Jorge para publicar o romance se deve ao fato de contar sutilezas do candomblé, no qual ocupava alta de função e passa, inclusive por personagem na história, ao lado de seus inseparáveis amigos, Dorival Caymmi e Carybé, "três obás de Xangô, três doutores honoris causa da escola da vida, três rapazes da Bahia, um músico, um pintor e um romancista".
Jorge Amado, Dorival Caymmi e a mãe Menininha do Gantois. Gantois é cenário do livro.

Yvonne Maggie é clara no posfácio, indicando que a santa some no seu translado de Santo Amaro da Purificação para figurar na exposição de Arte Sacra, organizada por D. Maximiliano, seu diretor. Quando a santa  chega ao cais da Bahia, ela se transforma em orixá. A estátua simplesmente some. Yvonne também esclarece o capítulo que trata da guerra de Aluvaiá e da chegada de Iansã ao terreiro do Gantois. Diz ela ser das mais belas do livro, onde Jorge "descreve o lado cerimonial - pois fala da dança ritual e da possessão, assim como dos postos da hierarquia de poder no terreiro -, mas fala também da futrica que nele acontece, ao criticar os falsos e os aproveitadores que usurpam o lugar dos verdadeiros sábios...". Eis a razão da demora de Jorge em publicar o romance.

A história em si é simples. Na igreja de Santo Amaro tem uma estátua de Santa Bárbara, a do trovão, que segundo afirmações de entendidos, entre eles D. Maximiliano, que ela é obra do Aleijadinho. D. Maximiliano, com a ajuda do cardeal primaz, consegue o empréstimo da santa, para fazer parte de uma exposição de Arte Sacra, contra a vontade do vigário de Santo Amaro. Então a santa começa a ser transportada, com a presença, no saveiro, de um padre e de uma freira. A santa some assim que o saveiro chega em Salvador. Some por 48 horas e misteriosamente aparece no devido lugar, bem na hora da abertura da exposição. O que se passa entre estas 48 horas é o enredo em que, certamente, mais do que todos, se divertiu o próprio autor.
Capa da primeira edição do livro. Observem a advertência: uma história de feitiçaria. Ilustrações do amigo Carybé.

Mas como Jorge nos conta, a história se centra nos descendentes do espanhol, Adalgisa e Manela. Adalgisa é a encarnação do mal. É uma beata, sob a tutela de um padre falangista espanhol. Nestes personagens, além do bispo auxiliar de Salvador são descarregados todos os males. No caso, a igreja católica conservadora, serve de abrigo a todos eles. Adalgisa se casa com Danilo, famoso jogador de futebol. A lua de mel, em que Danilo tenta consumar o seu casamento, merece mais de cinquenta páginas em que são descritas as reações da puritana e casta esposa. É de irritar. Adalgisa, com eternas dores de cabeça, tenta transferir todas as suas frustrações para sua sobrinha, Manela, cuja tutela, após a morte de seus pais, foi confiada ao casal. Adalgisa chega a interná-la num convento de freiras, numa operação articulada com José Antônio Hernandez, o falangista, fascista e racista padre espanhol.

Em contrapartida aos personagens do mal, ainda dentro do catolicismo, está o padre Abelardo Galvão, o padre melancia, admirador de D. Helder Câmara e da Teologia da Libertação e os personagens ligados ao candomblé, uma religião sem a concepção do pecado e do mal, conforme a crença de Jorge. Uma das partes mais hilárias do livro são as múltiplas investigações que as polícias, tanto a estadual quanto a federal, fazem em torno do sumiço da santa. A conclusão a que chegou a polícia federal é uma obra prima de humor. O sumiço se deu pela própria ação dos padres, interessados em financiar a subversão, num tráfico internacional de imagens sacras. Assim o padre Abelardo Galvão roubou a santa, a entregou para Violeta Arraes, filha de Miguel Arraes, que a levou diretamente a Paris. A Polícia Federal só não chegou a tempo porque no início de seu depoimento, D. Maximiliano ocultara o fato da presença do padre no Saveiro.

O livro foi escrito nos anos de 1987 e 1988 mas, lembrem o detalhe de que Jorge concebera o livro, já há  20 anos. Portanto, as ácidas críticas são finas ironias contra a ditadura militar. A mesma ironia é destilada, o tempo todo, contra a submissa e serviçal imprensa baiana.

No final, a partir do capítulo de a guerra de aluvaiá, as forças das divindades afro se impõem. Adalgisa faz nova lua de mel com Danilo, sendo agora boazinha, coisa que não fora 20 anos atrás. Em compensação, Danilo peida bem menos. Me desculpem, mas é Jorge quem dá a informação. Manela recebe a permissão de casar com Miro e o padre Abelardo Galvão recebe o pedido de amigação de Patrícia, a mais bela morena de toda a história. Casar não quer, mesmo porque, o padre não pode. Vejam o sobrenome da bela morena: Patrícia Vaalserberg, uma ode à mistura.

Não posso encerrar sem manifestar a preocupação de Yvonne no encerramento de seu posfácio, alertando sobre a mudança nos terreiros da Bahia. Se eram vistos como lugares de encontro, de mestiçagem e de feitiçaria de todos os brasileiros, parece que agora não ocupam mais o mesmo lugar. "Aquela Bahia está correndo risco, pois querem transformar a Iansã da mulata Manela em deusa apenas dos negros e reivindicar a propriedade dos terreiros e até mesmo da negritude e da tradição dos orixás expulsando a oiá mais bela, mais rica e mais miscigenada para festejar uma Iansã sem sincretismo. Será que aquela cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos, a Roma africana do encontro, sobreviverá à faina daqueles que querem ver o país transfigurado, por lei, em terra de negros e brancos desunidos".

Outra coisa extremamente agradável no romance é colocar os personagens reais na história. Assim aparecem Dona Canô e Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Betânia e até o João Ubaldo. Os amigos de Jorge também estão presentes em muitos momentos. O mestre de saveiro Manuel e Maria Clara acompanham Jorge, desde Mar Morto. 



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