segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Interpretações de Brasil. Darcy Ribeiro e a obra de Manoel Bomfim II.

Qualquer texto de Darcy Ribeiro sempre é muito qualificado. Não é diferente a apresentação que ele faz do livro de Manoel Bomfim, América Latina. Males de Origem. O livro foi publicado originalmente em 1905 e foi praticamente escondido dos leitores brasileiros por sua contundência na denúncia dos abusos cometidos em nossa colonização, tanto pelos portugueses, quanto pelos espanhóis. Cheguei ao livro por uma indicação do Antônio Cândido.
Um livro diferente, praticamente escondido da formação e dos leitores brasileiros. Uma visão original sobre os males de nossa colonização.

Na apresentação Darcy, que entrou em contato com o livro no Uruguai, em seu exílio, exalta o livro por estar cheio de indignação e ao mesmo tempo de esperança, pela certeza de que este país é um país viável. O seu ocultamento se deve as teses originais que defende, contra o todo o pensamento dominante na época. A sua descrição de portugueses e espanhóis passa por uma profunda análise da formação histórica destes povos, destacando a questão moura, na guerra da reconquista, quando os povos ibéricos se tornaram povos guerreiros e saqueadores e incapazes de se dedicar a qualquer tipo de trabalho. Uma frase de seu livro, posta em epígrafe, que bem pode sintetizar o espírito tanto do primeiro rei português, quanto do espanhol, D. Afonso Henriques e Pelayo, respectivamente. E de todos os outros também. Observemos a frase.

"O ladrão -... E vós mesmo, que tendes feito até hoje?
Alexandre - Tenho vivido como um herói: o mais bravo entre os bravos, o mais nobre dos soberanos e o mais poderoso dos conquistadores... E tu, ladrão miserável?
O ladrão - Mas que vem a ser um conquistador?... Não percorrestes em pessoa toda a terra, como um gênio mau, destruidor de belos frutos do trabalho e da paz... pilhando, matando, sem lei e sem justiça, simplesmente para satisfazer uma sede insaciável de domínio? Tudo que fiz, com centenas de homens, num pequeno recanto, vós o fizestes com centenas de milhares, sobre nações inteiras. Onde a diferença?... Nisto: o nascimento fez de vós um rei, e de mim um simples particular; sois um ladrão mais poderoso do que eu".
Um dos grandes livros de interpretação do Brasil, não obstante o seu olhar europeu.

O livro é escrito com este tom e é precedido de uma nota de advertência, que é um verdadeiro libelo contra a neutralidade. É impossível que as suas posições sejam mais claras. Por estes motivos o livro não ganhou divulgação, tendo ganho isso sim, fortes adversários, como Darcy nos mostra. Darcy nos conta que ele teve muitos predecessores, o que não teve foi sucessores. Os nossos pensadores eram servis demais para romperem com a tradição que apenas valorizava pensadores europeus. "Entre nós", diz Darcy, "a cultura não constrói, como em toda parte, pela superposição de tijolos nas paredes de um edifício que se levanta coletivamente. Aqui, cada pedreiro está olhando para a casa alheia e só deseja contribuir com seu grão de areia exemplificativo ou seu tijolinho de lisonjas ao pensador estrangeiro que mais o embasbaca. As gerações, assim, não se concatenam. Cada qual se atrela, se ancila, aos moinhos de ideias lá de fora".

O que diziam então estas ideias copiadas dos pensadores europeus? Elas atribuíam o atraso do nosso progresso ao clima, à raça ou à religião católica mas no pensamento de Bomfim eram "mistificações urdidas para disfarçar ações hediondas. O que se tomava por sabedoria científica é, a rigor, a ideologia do colonizador, consagradora de suas façanhas". Darcy dá o exemplo de alguns destes pensadores que viam o Brasil com o olhar das teorias europeias: Sílvio Romero, Joaquim Nabuco, Oliveira Viana e o próprio Euclides da Cunha. Outros que já viam o Brasil a partir de um olhar brasileiro, não tinham, no entanto a clareza da compreensão de Manoel Bomfim.

Sílvio Romero chegou a desancá-lo com uma obra que tinha por intenção única a sua desclassificação. procurou mostrar que era um completo idiota, mas como diz Darcy: "idiota era o Sílvio, coitado. Tão diligente no esforço de compreender o Brasil, mas tão habitado pelos pensadores europeus em moda que só sabia papagaiá-los. O considerava como um 'manoelzinho' que fazia leituras mal digeridas.
Até os nossos melhores escritores estavam cheios de preconceitos, especialmente eram contra a mistura de raças.

Até o grande Joaquim Nabuco, que tanto lutou pela abolição da escravidão e contra toda a obra por ela deixada, se ufanava de que pensava em francês e só tinha olhos para as belezas europeias. Vejam esta manifestação sua: "O sentimento em nós é brasileiro; a imaginação é europeia As paisagens todas do Novo Mundo, a Floresta Amazônica ou os pampas argentinos não valem para mim um trecho da via Appia, uma volta da estrada de Salermo e Amálfi, um pedaço do cais do Sena à sobra do Louvre".

Darcy ainda considera que o mulato Oliveira Viana "viveu sua vida sem se olhar no espelho", sucumbindo à suposta sabedoria de Gobineau ou Lapouge. Vejam uma frase sua: "O Brasil nasceu sob a regência de fidalgos e cortesãos lusitanos habituados à vida dos paços reais e aos seus prazeres e galas. Nos trazem os hábitos, tão surpreendentes aqui, da sociabilidade, da urbanidade e do luxo. A ouriçaria esfervilhante dos latifúndios, uma massa de mestiços ociosos e inúteis, é uma ralé a degradar pela corrupção, pela miséria e pela mestiçagem a pureza de sangue e de caráter".

Sobra até para o Euclides da Cunha, um dos nossos escritores maiores, que tão bem sabia ver a energia do sertanejo, não obstante defender a ideia de que a "a mistura de raças é danosa, de que o mestiço é um desequilibrado, o mulato, quase um estéril". Sobra ainda para Nina Rodrigues e até para Gilberto Freyre, que retoma estes temas, quando estas teorias já não faziam mais sentido e, mesmo assim, se mostra encantado com a bondade do senhor do engenho. A leitura do livro é uma aventura fantástica, começando com a teoria do parasita.




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