segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

De Martí a Fidel. Moniz Bandeira.

Em julho de 2016, junto com amigos, realizei o sonho de uma viagem a Cuba. Havana, Santa Clara, Cienfuegos, Trinidad e a paradisíaca Varadero estavam no roteiro. Mas acima de tudo, queria conhecer o país, que por tão longo tempo, afrontou e continua afrontando o poder da "maior democracia do mundo". Agora termino de completar esta viagem com a leitura de De Martí a Fidel - A Revolução Cubana e a América Latina, do professor Luiz Alberto Moniz Bandeira. Um complemento simplesmente maravilhoso. Aliás, não é um mero complemento.
797 páginas de informação e análise.

O título do livro merece as primeiras observações. José Martí foi o grande mártir das guerras de independência, que se travaram tanto contra a Espanha, quanto contra os Estados Unidos e das quais sobrou a nefasta experiência de Guantânamo. José Martí é o grande heroi histórico, sempre presente na memória das lutas do povo cubano. Outra referência é a questão da América Latina, onde o espírito revolucionário sempre esteve presente, muito mais pelas questões do nacionalismo do que da doutrina do marxismo - leninismo propriamente dito. E neste sentido entra em cena a história dos Estados Unidos e a aludida vocação "natural" da expansão de suas fronteiras e os desígnios de Deus para com o seu  "novo povo" escolhido.

O livro tem um prólogo maravilhoso. É de autoria do professor de Política Externa dos Estados Unidos, da Universidade John Hopkins, Piero Gleijeses. Nele o professor acusa a arrogância da maior democracia do mundo, como a causa da Revolução de 1959, bem como a de sua radicalização e permanência. E esta causa vem de longos tempos de prepotência e agressividade. Em maio de 1895, pouco antes de morrer em combate contra as tropas espanholas, Martí advertia sobre o perigo de cair sob a dominação dos Estados Unidos e fez a conclamação para que isso não ocorresse: "Vivi no monstro (Estados Unidos) e conheço suas entranhas, e a minha funda é a de Davi".

Na introdução do livro Moniz Bandeira destaca o caráter nacionalista da Revolução de 1959 e, por isso também, o seu caráter popular e a sua longa permanência. Como os Estados Unidos são apontados como a grande causa da Revolução, ele remonta à história deste país para lhe analisar o seu espírito de arrogância e prepotência para, a partir deste pressuposto analisar as relações entre Theodore Roosevelt e José Martí por ocasião das guerras da independência.

Moniz Bandeira faz longas análises sobre os movimentos revolucionários na América Latina e em todos eles aponta para o espírito nacionalista, como a causa primeira, mais mesmo do que a doutrina marxista leninista. Mesmo porque sob o stalinismo prevalecia a tese do fortalecimento do socialismo em único país e em seus satélites e, em consequência, a doutrina da convivência pacífica e a contenção de novas revoluções. A esta altura, o autor já está na análise do pós Segunda Guerra e lamenta o fato de não ter havido um Plano Marshall para o desenvolvimento da América Latina, como houve para os países europeus.

Quanto ao foco específico na Revolução cubana, ele mostra a total dependência de sua economia dos Estados Unidos, que absorvia todo o açúcar de sua monocultura canavieira. Isso causava grandes insatisfações, oriundas da extrema miséria do povo, e focos de constantes insurreições, dominadas por cruéis ditaduras, como foi a de Batista, derrubada em 1959. Havia uma grande variedade de grupos que disputava a liderança dos movimentos revolucionários. Entre eles surgiu um que praticou o audacioso assalto ao quartel de Moncada, no dia 26 de julho, data que deu o nome ao grupo revolucionário vencedor. Os sobreviventes deste assalto se refugiaram no México e, a partir desta base, se estruturaram para voltar a Cuba, o que fizeram com o conhecido episódio do iate Granma. Entre estes sobreviventes estavam os irmão Fidel e Raul Castro e Camilo Cienfuegos. A eles se somara Chê Guevara, associado ao grupo por intermédio de Raul. O iate foi interceptado e poucos sobreviveram. Estes sobreviventes empreenderam a guerra de guerrilhas na Sierra Maestra.

Com a vitória, no Reveillon de 1959, vem também as dificuldades, tanto de ordem interna, quanto externa. Na ordem interna, a disputa entre os grupos e na parte externa, os eternos Estados Unidos e a sua luta pela restauração da democracia e da liberdade. Neste momento, já no capítulo VII, o livro atinge o seu ponto central, que é o da análise da resistência da Revolução e a sua política interna e externa. Chamam a atenção as enormes dificuldades impostas pelos Estados Unidos. Destaco alguns capítulos que mais marcaram a minha leitura. No capítulo VIII estão as sabotagens estimuladas pelos governos Eisenhower e Kennedy e, no IX, o grande fiasco da invasão de Girón, na Baía dos Porcos e o grande clima de tensão provocado. O medo da invasão soviética a Berlim Ocidental pairava no ar. O Bloqueio e o Plano Moongose continuam ocupando muitas páginas, até chegarmos a questão dos mísseis.

Esta é tratada no capítulo XIII. O desarmamento veio em função dos medos recíprocos. Kennedy receava, além de ataques ao território americano, por Berlim e pelas bases militares na Turquia, enquanto os russos ficavam na defensiva, temendo a eclosão da terceira Guerra Mundial. Planos de desarmamento esfriaram a questão. Já estamos no ano de 1962, quando João Goulart é o presidente do Brasil, que obviamente também será merecedor de análises. Antes dele, houve a condecoração ao Chê, por Jânio Quadros.
 Na Praça da Revolução, monumento em homenagem a José Martí.

O capítulo XVI é dedicado a Chê Guevara. Toda a sua visão é mostrada. A sua formação, a sua visão sobre o marxismo, sobre o stalinismo, a percepção da necessidade da industrialização de Cuba para fugir da dependência de sua commodity, o açúcar e os seus desentendimentos com Fidel. A sua inteligência rebelde o fez se aproximar da China e sua visão trotskista o compelia para a revolução permanente. Chê partiu para novas revoluções, primeiro na África e, depois, numa aproximação com a sua Argentina, foi para as terras bolivianas onde se encontrou com a morte.

A abrangência do livro chega até o ano de 2008. Há, portanto, tempo para abordar as dificuldades do pós colapso soviético  de 1991. Seguramente foram os anos mais difíceis para a manutenção da Revolução. Cuba teve uma diminuição em suas atividades econômicas em torno de 35% de seu PIB. Além disso o Bloqueio continuava, assim como a dependência do açúcar e a falta de petróleo, impossibilitava o movimento das máquinas agrícolas. Além disso havia a presença constante de furacões que causavam bilhões de dólares de prejuízos. Além do mais, os Estados Unidos passou por governantes cada vez mais intolerantes, com a exceção apenas de Jimmy Carter. Mas a Revolução sobreviveu. No Museu da Revolução existe o Rincon de los cretinos, em que são prestadas quatro homenagens: A Batista, contra o qual fizeram a Revolução; a Ronald Reagan, que a fortaleceu; a Bush pai, que a consolidou e a Bush filho, que tornou o socialismo irrevogável.

Nos anos 1990, a enfermidade de Fidel prenunciava uma morte próxima, que marcaria o fim da Revolução. Esta ao menos era a visão da maioria dos cubanos e americano cubanos residentes em Miami (Em torno de 1,6 milhões de pessoas). Muitos, já em festa. Fidel, no entanto, sobreviveu até 2016 e promoveu uma tranquila transição de poder. Raul Castro, que sempre fora comandante do exército revolucionário nunca teve o seu poder contestado. Aos poucos, promoveu transformações econômicas, abrindo a sua economia, especialmente para o turismo. Também houve uma significativa mudança na situação política da América Latina, a começar pela Venezuela, o novo parceiro comercial de Cuba. China, Canadá e Espanha tornaram-se outros parceiros importantes. A economia melhorou significativamente com a sua diversificação. Mas 2008, o ano final das análises do professor Moniz Bandeira, já trazia em seu bojo uma nova crise do capitalismo mundial, que como o professor antevia, traria novos problemas para a economia e para a Revolução cubana.
A história da Revolução cubana está maravilhosamente contada no Museu da Revolução.


Na minha viagem em 2016 fiz as minhas observações. O igualitarismo, como o livro bem assinala, foi abandonado. Ele foi substituído pelo conceito de avanços sociais na saúde, na educação e no atendimento às necessidades básicas. O livro também aponta para a existência de duas moedas, uma de circulação entre os turistas (CUC) e outra que regula a economia interna (CUP). É óbvio que quem tem acesso ao euro e ao dólar dos turistas, nem que seja sob a forma de gorjetas, leva vantagem sobre os salários pagos em moeda local. E isso é um problema, Ou, o problema.

Enfim, a Revolução tida como impossível de acontecer e de sobreviver, continua fortemente enraizada na mente e no coração do povo, como vimos pelas manifestações da apreço a Fidel em seus cerimoniais fúnebres. E como nos aponta Moniz Bandeira em seu fabuloso livro de 797 páginas, isto se deve muito mais ao seu caráter nacionalista (Patria o muerte) e sentimento de autonomia do que qualquer outra razão. Esta também foi uma constatação que eu fiz. Cuba só será um país independente e autônomo sob o sistema socialista. 1959 foi a data da verdadeira proclamação da sua independência.

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