quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

EU, Daniel Blake. Um drama humano.

Certamente você já passou por situações semelhantes, mas com desfechos não tão dramáticos. Aquela ligação telefônica infindável, aquele preenchimento de fichas e de dados via virtual, ou mesmo um atendimento pessoal, em que o funcionário que te atende, o faz com muito má vontade. Pois bem, Daniel Blake passou por todas estas situações. Elas o deprimiram e ele só encontrou um conforto entre as pessoas que viveram dramas similares ao seu.

Eu, Daniel Blake, Palma de Ouro em Cannes - 2016.

Daniel Blake, viúvo de 59 anos e marceneiro de profissão, sofre um ataque cardíaco que o afasta temporariamente do trabalho, obrigando-o a recorrer aos serviços de seguridade social. Isso ocorre na Inglaterra em que estes sistemas são bem avançados e protegidos em legislação, mas que os governantes, ao que parece, tem muito pouca vontade em conceder. Pelo que me consta, os últimos governantes ingleses pertenceram, todos eles, a partidos conservadores e não simpáticos a estes benefícios. Problemas do indivíduo. Enredá-los na burocracia é a forma encontrada pela qual muitos desistem de buscar tais benefícios. Outros morrem nas filas de espera.

Daniel Blake, particularmente, sofre ainda mais com a situação. Ele, como muitos em sua idade, é um analfabeto digital. Eu fiquei me imaginando neste processo de alfabetização. O sistema trava, expira o prazo, os dados somem, as sequências falham e o sistema nervoso parece querer explodir. Eu pessoalmente me lembrei preenchendo, ou inserindo, o meu currículo na plataforma Lattes. Isso dificultou muito a vida do prático marceneiro. Mesmo nos atendimentos pessoais, ele teria que comprovar fatos por via virtual. Os atendentes mostravam muito pouca boa vontade e até o ameaçavam com punições.

Em sua via crucis, cruzou com jovens da vizinhança, que buscavam na falsificação de produtos de marca, tanto a sua liberdade, quanto a sua sobrevivência. Não estavam dispostos a ganhar a vida em empregos formais. Com eles se deu bem e, deles recebeu auxílio nas lides com a informática. Mas o enredo cresce em dramaticidade quando encontra Katie, uma jovem mãe, que também busca na seguridade social o seu principal meio de subsistência. Cenas profundamente humanas envolvem Blake, Katie e as crianças. Eles, mutuamente, se ajudam em todas as dificuldades. Mas a submissão e as constantes humilhações faz com que as pessoas guardem as tristezas para si, buscando solução no isolamento. As crianças então interferem positivamente, fazendo com que se reencontrem. Cenas dramáticas, porém, revestidas de profunda ternura.

Daniel Blake resolve expor publicamente o seu drama, pichando o seu problema em um muro. A ordem prevaleceu. Recolheram-no em nome desta mesma ordem, mas por ser um cidadão de vida exemplar lhe concedem a liberdade. Com a ajuda de Katie e de um advogado amigo, Blake consegue marcar o dia decisivo para o seu afastamento definitivo do trabalho, que marcaria o fim de seu drama. O dia chega. Ele está profundamente alterado, extremamente nervoso. Katie o acompanha. Quase na hora decisiva ele pede para passar uma água no rosto, uma cena muito comum. E com este último gesto, o seu drama realmente chega ao fim. Uma vítima da burocracia.

Ainda uma cena final. O pequeno mundo de Daniel Blake assiste ao seu velório. As poucas pessoas presentes ouvem o que Daniel iria dizer aos que o examinariam, no seu encontro decisivo com a burocracia, fazendo o relato de seu drama, certamente o drama de milhares de cidadãos britânicos. Ken Loach, o seu diretor, foi premiado com a Palma de Ouro em Cannes - 2016. Já no alto de seus 80 anos continua a sua incansável batalha por um mundo mais humano e sensível.

E continuando a estabelecer paralelos, milhares de cidadãos brasileiros estão sendo convocados por órgãos burocráticos da Previdência Social para rever a concessão de seus benefícios. Certamente serão submetidos a processos muito semelhantes aos enfrentados pelo cidadão britânico Daniel Blake. Filme absolutamente imperdível, especialmente em tempos de tanto ódio e revolta, aqui entre nós, pelo simples fato de existirem esses benefícios sociais e em que, as políticas de construção de cidadania são vistas como a fonte de todos os males e a razão da falência do Estado.

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