quinta-feira, 11 de setembro de 2025

UTOPIA AUTORITÁRIA BRASILEIRA. Carlos Fico.

Um livro simplesmente extraordinário. Mais atual, impossível! Estou me referindo ao Utopia autoritária brasileira - Como os militares ameaçam a democracia brasileira desde o nascimento da República até hoje, do renomado e rigoroso historiador, Carlos Fico, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Um relato histórico denso e rigoroso, acompanhando a interferência dos militares na política brasileira, desde os tempos que antecederam a proclamação da República, até a instauração da ditadura civil-militar de 1964. Na conclusão, algumas incursões sobre o momento atual da política brasileira, momento ímpar, em que militares estão sendo julgados pela Poder Judiciário, um fato inédito em nossa história.

Utopia autoritária brasileira. Carlos Fico. Crítica. 2025.

Num dos primeiros parágrafos, na apresentação do livro, o autor nos afirma categoricamente que "O Exército brasileiro sempre desrespeitou a democracia. As Forças Armadas violaram todas as constituições da República. Rebeliões contra decisões legítimas: sublevações motivadas por corporativismo; golpes de Estado e tentativas de golpe. Indisciplina e subversão marcam a trajetória dos militares no Brasil. Eles foram responsáveis por todas as crises institucionais do país desde a Proclamação da República e jamais foram efetivamente punidos. Esse intervencionismo militar expressa a fragilidade institucional da democracia brasileira até hoje - como ficou evidente nos anos recentes" (Página 8).

A comprovação dessa afirmação é o teor do longo livro do historiador. Ao todo ele tem 448 páginas, sendo as primeiras 379 dedicadas à análise dos fatos e as restantes, à bibliografia e notas das fontes trabalhadas. Vamos a um esboço, ou sumário do livro. Os capítulos não são numerados, mas são oito no total, mais a apresentação, conclusão, bibliografia e notas. Vejamos os capítulos e os seus tópicos: Vou enumerá-los: Capítulo I. Deposição de Pedro II: "Banco aceita transação". A guerra e o ressentimento contra os civis. Questão militar. O pecado original da República. Predomínio militar na nova Constituição. Capítulo II. A mocidade militar se revolta: Um golpe militar durante a Revolta da Vacina. A revolta da escola da Praia Vermelha. Punição e anistia.

Capítulo III. Fraudes, indignação e voluntarismo militar: Em busca da verdade eleitoral. O tenentismo. A glorificação dos tenentes. A "Reação Republicana" e as cartas falsas. 1922: tentativa de golpe no Rio de Janeiro. 1924: tentativa de golpe em São Paulo. Capítulo IV. Militares, revolução e ditadura: A deposição de Washington Luís. O autogolpe do Estado Novo. 1945: Deposição de Getúlio Vargas. Capítulo V. Cinco presidentes e dois golpes: General democrata ou sedicioso. O segundo governo Vargas. Contra a posse dos eleitos. Duplo golpe.

Capítulo VI. Voos turbulentos: Militarismo na aeronáutica. Jacareacanga. Aragarças. Capítulo VII. O pior da história do Brasil: A renúncia inesperada. Veto militar e imposição do parlamentarismo. Capítulo VIII. Deposição de João Goulart: Uma memória controvertida. Desestabilização e conspiração. Antecedentes. O golpe de 1964.

Depois da explanação desses temas, ainda no primeiro parágrafo da conclusão lemos: "Neste livro, eu quis enfatizar a obviedade de que o intervencionismo militar por meio de pronunciamentos, golpes e tentativas de golpes se fundamenta na força das armas. Não se constitui apenas em ação política equívoca, mas no recurso à violência contra aqueles que confiaram aos militares a defesa da nação. É um crime grave" (Página 367). Depois o autor afirma que essas intervenções sempre foram encobertas pelo mito da "história incruenta", isto é, sempre ocorreram sem o derramamento do "sangue generoso do povo brasileiro", para a seguir afirmar: 

"Entretanto, descrevi uma série de episódios em que houve confronto armado: nas fracassadas tentativas de golpe de 1904, 1922 e 1924; na vitoriosa mobilização de 1930 e nas duas tentativas malsucedidas contra JK em 1956 e 1959. Além disso, embora não tenha havido confronto, houve movimentação de tropas na Proclamação da República, nas deposições de Vargas, durante os golpes de Lott, no pronunciamento de 1961 e no golpe de 1964" (Página 368). No dizer de Eduardo Gomes a justificativa era a regeneração dos costumes políticos. 

Qual seria a origem desse espírito de intervenção, uma espécie de poder moderador permanente atribuído às Forças Armadas, presente em todas as Constituições brasileiras? Já na Constituição de 1891 estava inscrito, sob a influência de Rui Barbosa, que o Exército devia ser "respeitável e respeitado dentro dos limites da lei". Isto é: se os governantes transgredissem a lei, as Forças Armadas teriam o direito de intervir. Convenhamos, um princípio totalmente subjetivo. Isto ainda está presente na Constituição de 1988, por uma cláusula inegociável, segundo o autor, no confuso artigo 142. Pela sua importância, no atual momento, eu o nomino em seu caput: "As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem". Espaço para a famosa GLO.

E o título: Utopia autoritária. O autor assim o explica: "Tendo estudado os diversos aspectos da ditadura militar nos últimos trinta anos, desenvolvi algumas hipóteses. Creio que a principal foi a que eu chamei de utopia autoritária: o entendimento militar de que os problemas brasileiros seriam superados e o Brasil se tornaria uma 'grande potência' na medida em que fossem eliminados os obstáculos - chamados de 'óbices' pelos militares - que impediriam essa ascensão. Os principais seriam  a 'subversão comunista' e a 'corrupção dos políticos" (Página 377). A eliminação destes óbices gerou a chamada "linha dura" e justificou a censura, a tortura e as medidas excepcionais. As chamadas medidas "saneadoras". Nisso tudo também havia uma "dimensão pedagógica", assim descrita: "Em sua dimensão 'pedagógica', tal utopia considerava que os brasileiros eram despreparados e seria preciso educá-los, o que se verificava muito claramente, por exemplo, na propaganda política da ditadura, na censura das diversões públicas ou nas disciplinas de 'moral e cívica' que havia no período. Uma pedagogia obviamente autoritária" (Página 378).

E qual seria a utopia que almejavam construir? Quais seriam as suas perspectivas? "Ambas as dimensões compartilhavam, entretanto, algo fundamental: o futuro grandioso do "Brasil Potência" justificaria eventuais rupturas constitucionais, desde as ilegalidades criminosas e brutais praticadas pelos órgãos de repressão até os desvios menos notáveis, mas igualmente ilegais, da tentativa de doutrinação ideológica feita pela propaganda política ou da 'proteção' da sociedade com a censura moral que coibia 'abusos' como a nudez e o palavrão" (Página 378). Vejamos mais um parágrafo:

"Essa hipótese analítica orientou meus estudos sobre a ditadura militar. Entretanto, quando analisamos o período anterior e posterior, verificamos que aspectos dessa utopia autoritária têm longa duração e são persistentes. É o caso, por exemplo, da visão elitista do 'povo despreparado' e da classe simplista de que a corrupção é a causa fundamental de nossos males. De acordo com a perspectiva autoritária, se o povo é despreparado e o sistema político está comprometido, os desvios da Constituição se justificam, sendo o principal a tentativa de tomada do poder pela violência, o golpe de Estado, para o qual as Forças Armadas são indispensáveis. Note-se que muitos outros indícios de leniência com a ruptura da legalidade constitucional poderiam ser elencados, mas isso daria outro Livro" (Página 379).

Outro livro, com certeza, mas que o autor não está predisposto a escrever. Ele afirma que Utopia autoritária brasileira é o seu último livro. Uma pena, se ele cumprir ao que se propõe. Quanto a importância do livro, creio que todos já a perceberam. Vejamos ainda a orelha da capa:

"Neste que considera o último livro de sua carreira, o premiado historiador Carlos Fico examina, com rigor e profundidade, as principais intervenções militares que moldaram a história do Brasil: da Proclamação da República, em 1889, ao golpe de 1964, chegando ao intervencionismo militar dos anos recentes. Além de reconstruir esses momentos críticos, o autor desmonta a crença equivocada de que as Forças Armadas seriam as mais qualificadas para atuar como um  Poder Moderador republicano, à semelhança da prerrogativa imperial prevista na Constituição de 1824.

Utopia autoritária brasileira resgata, em ordem cronológica, mais de uma dezena de golpes e tentativas de golpes desde a proclamação, investigando os padrões recorrentes do intervencionismo militar: Ao longo dos capítulos, personagens reaparecem em diferentes momentos da história - golpistas persistentes, legalistas que mudam de lado, juristas coniventes - compondo um retrato multifacetado da política brasileira. Embora explore a 'melancólica trajetória nacional', como define o autor, esta obra cativante fascina a todos que se preocupam com os rumos do país". Nunca houve um momento tão oportuno, tanto para a publicação, quanto para a leitura desse livro, como o momento atual. 

Eu também tenho uma outra proposta de leitura. Ela versa sobre a ideologia que impregna as Forças Armadas, especialmente após a sua participação na Segunda Guerra Mundial, sob o comando dos Estados Unidos. É A ideologia da Segurança Nacional, do padre belga, Joseph Comblin.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/11/a-ideologia-da-seguranca-nacional-padre.html

ADENDO: DIA 11 de setembro de 2025. 15horas e quarenta e um minutos. A ministra Carmen Lúcia sela o destino de Jair Bolsonaro e seus asseclas golpistas. CONDENADOS. Inédito na história do país como lemos nesse magnífico livro. Que coincidência!. Publiquei o post no dia da condenação.


 

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

MORTE DE UM DISSIDENTE. O envenenamento de A. Litvinenko e a volta da KGB.

Mais um dos livros que ficou à espera de leitura por um bom tempo. Quase quinze anos. Comprei-o no ano de 2011, em promoção. O tema e a confiabilidade na editora certamente moveram a compra. Trata-se de Morte de um dissidente. O envenenamento de Alexander Litvineko (Sacha) e a volta da KGB. Os autores são Alex Goldfaber e Marina Litvinenko, sendo essa a esposa do morto, num dos muitos assassinatos atribuídos a Putin, ao seu grupo instalado no Kremlin. O crime aconteceu em Londres, em fevereiro de 2007.

Morte de um dissidente. Alex Goldfarb e Marina Litvinenko. Companhia das Letras. 2007


Este assassinato por envenenamento serve de pretexto para examinar a política da Rússia, após o esfacelamento da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Assim os temas centrais são a ascensão de Boris Iéltsin ao poder e as reformas de Estado por ele praticadas, a atuação das antigas instituições do Estado, especialmente as ligadas as investigações, como a KGB, agora respondendo sob a sigla de FSB e especialmente a sucessão de Iétsin, com a passagem do poder a Vladimir Putin, um antigo membro da KGB, a tão temida KGB, e, como nos sugere o subtítulo do livro, a sua volta aos círculos do poder. Os fatos relatados vão até fevereiro de 2007. 2007 é também o ano da publicação do livro, um lançamento certamente mundial, uma vez que a edição brasileira também é desta data.

Uma frase fantástica sintetiza bem o que foi esta passagem de poder. Ela foi retirada de uma reportagem da revista Time, que "comparou o confronto entre Putin e Boris Berezovski ao de Stalin com Trótski". O título do livro nos dá a posição do mote da dissidência. Litvichenko (mais tratado pelo apelido - Sacha) também foi um integrante da antiga KGB, mas adversária de Putin. Alex Goldarb, o autor, também pertencia ao grupo dissidente, uma vez que estava umbilicalmente ligado a Berezovski. Mas o tema que mais espaço ocupa no livro é o dos conflitos da guerra com a Tchetchênia, tão comentada na época e ao mesmo tempo, muito pouco conhecida. Ela merece um olhar mais particular. Ela é também a grande marca dos personagens deste livro. Vejamos:

"De uma forma ou de outra, a guerra na Tchetchênia tornou-se o contexto definidor da vida de Sacha e Marina, de Boris e Putin, de Akhmed Zakaiev, minha, e de todos que faziam parte dos nossos círculos coletivos. A Tchetchênia foi o cemitério da democracia russa e o motivo final que levou a Rússia a se afastar do Ocidente. O confronto de Boris com o Partido da Guerra e seus conflitos com o FSB, que arrastaram Sacha para o torvelinho das lutas pelo poder no Kremlin, começaram com a Tchetchênia. Para Putin, a Tchetchênia passou a ser uma interminável disputa de judô e a liga que cimentou sua destrutiva relação de dependência com George Bush" (Página 361). Para compreender bem esta situação, vejamos mais alguma coisa.

A Tchetchênia hoje integra a Federação Russa, mas mantém um forte sentimento de autonomia. Os conflitos tem sua origem na desintegração do Império Soviético. Houve duas guerras. A primeira, entre 1994 e 1996 e a segunda, na verdade, uma continuação da primeira, entre 1999 e 2009. Ela tem apenas 1,5 milhão de pessoas, sendo que a maioria pratica o credo muçulmano. São uma província autônoma, com Constituição e idioma próprios. Se situa na região do Cáucaso e a sua importância é enorme, devido aos dutos de petróleo e gás, que ligam o Mar Cáspio ao Mar Negro, donde atingem os mercados globais. A região, ainda hoje não está inteiramente pacificada. Persistem os movimentos de guerrilha. A atuação da FSB, mais contribuiu para agravar os problemas do que para pacificar a região. É, "o cemitério da democracia".

O livro está dividido em cinco partes e quinze capítulos. As partes são: I. Como se faz um dissidente (Sacha); II. Briga pelo Kremlin (A sucessão de Ieltsin entre Boris Berezovski e Putin e o posicionamento do Ocidente); III. Os tambores da guerra (Tchetchênia); IV. Como se faz um presidente (À moda russa). Putim emerge dos quadros da KGB; V. A volta da KGB (As transformações de Putin no Poder). Alex Goldfarb, o co-autor, em nota do autor, nos adverte: "Esta é uma história sobre a vida e a morte de um homem, mas é também uma narrativa de eventos históricos e de realizações e iniquidades de líderes mundiais". Destaca que são testemunhos seus, baseados em fatos e que "A verdade final pode ser revelada pela História".

O livro cresce em suspense ao seu final, com a narrativa do envenenamento de Sacha, em Londres. Venenos radioativos que provocam morte lenta. O último capítulo é sobre as investigações. O autor implica este assassinato às forças do Estado, por implicações óbvias. A sofisticação e o acesso ao veneno, apenas seria possível às forças do Estado. O Estado terrorista é uma das marcas do livro. Os atos maldosos e de terror, são sempre praticados pelo FSB, mas sempre recaem, ou são atribuídos aos opositores. Leitura atraente e que flui espontaneamente.

Vejamos a contracapa: "Em 2006, o dissidente russo Alexander Litvinenko (Sacha) foi envenenado e, diante das câmeras do mundo todo, anunciou que o responsável era ninguém menos que o presidente da Rússia, Vladimir Putin. Morte de um dissidente é a história desse crime, típico dos tempos da KGB, e também um retrato detalhado da Rússia atual, de sua nova dinâmica política e da subida de Putin ao poder.

Quem narra o caso é o ativista (e também dissidente) Alex Goldfarb, que ajudou Litvinenko a fugir da Rússia e cujas relações com o magnata Boris Berezovski - um dos protagonistas desta intrincada trama de espionagem - resultam num ponto de vista único dos acontecimentos, com a colaboração de Marina Litvinenko, viúva do espião, o que Goldfarb oferece neste verdadeiro Thriller político é uma visão privilegiada dos motivos que levaram a esse crime". 

Mas, o que Litvinenko anunciou em seu leito de morte? Ele ditou o seguinte:"... Por isso, acho que chegou a hora de dizer uma ou duas coisas ao responsável por esta minha doença.

Talvez o senhor consiga me silenciar, mas esse silêncio tem um preço. O senhor mostrou que é tão bárbaro e implacável quanto afirmam os seus críticos mais ferozes. Mostrou que não tem respeito pela vida, nem pela liberdade, nem por nenhum valor civilizado. Mostrou-se indigno do seu cargo, indigno da confiança de homens e mulheres civilizados.

Talvez o senhor consiga silenciar um homem. Mas um urro de protesto, no mundo todo, há de reverberar em seus ouvidos, sr. Putin, pelo resto de sua vida.

Que Deus perdoe o que o senhor fez, não só a mim, como também à amada Rússia e ao seu povo" (Páginas 413-4).

Putin reagiu falando da insignificância do assassinado. E o povo russo se dividiu sobre Litvinenko, entre o herói dissidente ou o traidor da pátria russa. Essa última versão é a que predominou.