quinta-feira, 19 de outubro de 2023

A MONTANHA MÁGICA. Settembrini define o que é o humanismo.

A montanha mágica é um romance de formação. O moço em formação é Hans Castorp, um jovem burguês que subira a montanha (Davos) para visitar o seu primo Joachim Ziemssen, em tratamento de uma doença pulmonar. Ali recebe inúmeras lições e, entre elas, as de maior densidade e frequência estão as de Settembrini, um defensor do Iluminismo e do Humanismo, do progresso da humanidade pela via da ciência e do entendimento. O trecho que segue é um belo exemplo do que se passa na Europa dividida e a caminho da Primeira Guerra Mundial. O romance data do ano de 1924. Tempos agitados. Ouçamos a voz de Settembrini:

A montanha mágica. Thomas  Mann. A voz forte de Settembrini.

"Segundo as digressões de Settembrini, havia dois princípios que disputavam a posse do mundo: a força e o direito, a tirania e a liberdade, a superstição e a ciência, o princípio da estagnação e o do movimento efervescente, do progresso. Podia-se chamar a um o princípio asiático e ao outro o europeu, visto ser a Europa a terra da rebelião, da crítica e da atividade transformadora, ao passo que o continente oriental encarnava a imobilidade, o repouso inerte. Não existia a menor dúvida quanto à questão de saber qual das duas forças terminaria por triunfar; só poderia ser a da luz, a do aperfeiçoamento guiado pela razão. Pois a Humanidade arrastava povos e mais povos pelo seu caminho brilhante; ganhava cada vez mais terreno na própria Europa e estava a ponto de penetrar na Ásia, No entanto, faltava ainda muito para que a sua vitória fosse completa, e grandes, magnânimos esforços eram exigidos dos homens de boa vontade, dos que haviam recebido a luz, até que raiasse o dia em que desmoronassem as monarquias e as religiões também naqueles países que na verdade nunca tinham gozado o seu século XVIII nem seu ano de 1789.

- Mas esse dia há de chegar - disse Settembrini, esboçando um fino sorriso sob a curva do bigode. - Se não chegar pelos pés das pombas, chegará sobre as asas das águias. Nascerá como a aurora da confraternização geral dos povos sob o signo da razão, da ciência e do direito. Acarretará a santa aliança da democracia dos cidadãos, em esplêndido contraste com aquela três vezes infame aliança dos príncipes e dos gabinetes, cujo inimigo mortal foi o avô Giuseppe; numa palavra a República Universal. - Mas para alcançar esse objetivo final era, antes de mais nada necessário ferir o princípio asiático, o princípio servil da inércia, no centro e no nervo vital da sua resistência, que era Viena. Tratava-se de vencer, de aniquilar a Áustria, primeiro para tirar desforra das suas façanhas do passado, e depois para encaminhar o reino da justiça e da felicidade sobre a terra.

Esse último rumo e essa conclusão das altissonantes expansões de Settembrini já não interessavam a Hans Castorp. Causavam-lhe desagrado e até chocavam porque via neles a expressão de um rancor pessoal ou nacional, cada vez que que se repetiam. No que tocava a Joachim Ziemssen - quando ele ouvia o italiano discorrer dessa forma, voltava mesmo a cabeça, de cenho carregado, e cessava de escutar; às vezes também dizia que estava na hora do repouso ou tentava mudar de assunto. Hans Castorp tampouco se sentia obrigado a prestar atenção a ideias tão extravagantes, que, evidentemente, ultrapassavam os limites das influências que a voz da sua consciência lhe aconselhava admitir, a título de experiência; e essa voz era todavia tão forte que ele próprio se punha a pedir ao Sr. Settembrini lhe explanasse as suas ideias, sempre que o italiano ia sentar-se à mesa dos primos ou os acompanhava durante um passeio.

Essas ideias, esses ideais e essas aspirações, observou Settembrini, faziam parte das tradições da sua família. Pois todos os três lhe haviam consagrado a vida e as forças do espírito: o avô, o pai e o neto, cada qual à sua maneira, o pai não menos que o avô, se bem que não tivesse sido, como este, um agitador político e um paladino da liberdade, senão um sábio quieto e delicado, um humanista que vivia amarrado à sua escrivaninha. Mas, que era afinal o humanismo? Era o amor aos homens, nada mais, nada menos, e por isso mesmo implicava também a política, a insurreição contra tudo quanto mancha e desonra a dignidade humana, em esplêndida oposição à Idade Média, que vivia não só entregue à misantropia e à superstição, como também enfeada por uma ignominiosa falta de forma. Desde os seus inícios, defendera a causa do Homem, os interesses terrenos, a liberdade do pensamento e o prazer de viver, opinando que o céu, por motivos de equidade, pertencia aos pardais. Ah, Prometeu! Fora ele o primeiro humanista e idêntico àquele Satã, ao qual Carducci dedicou o seu hino... Oh, meu Deus, se os primos pudessem ouvir como o velho inimigo da Igreja, em Bolonha, maldizia e zombava da sensibilidade cristã do Romantismo! Dos Hinos Sacros de Manzoni! Da poesia de sombras e luares dos românticos, que ele comparava a 'Lua, a pálida monja celeste'! Per Bacco, que prazer sublime, escutar esse homem! E também deveriam ter ouvido Carducci interpretando Dante: celebrara-o como cidadão de uma metrópole, que defendia, contra a ascese e a negação do mundo, a força ativa que revolucionava e melhorava o mundo. Ora vejam, não era a sombra enfermiça e mística de Beatriz a quem o poeta honrava sob o nome de 'donna gentile e pietosa'; pelo contrário, assim designava a esposa que no poema representava o princípio do conhecimento das coisas deste mundo e da atividade prática na vida.

Dessa maneira, Hans castorp aprendia isto e aquilo sobre Dante, e da melhor das fontes. Não se fiava irrestritamente nesses seus novos conhecimentos, dado o espírito estouvado de quem lhe servia de intermediário. Mesmo assim, valia a pena saber que Dante fora um cidadão de uma metrópole e tivera um espírito vivaz. E a seguir, Hans Castorp prestava atenção ao que Settembrini contava de si próprio. Declarava o italiano que no neto Lodovico, isto é, em sua pessoa, se haviam combinado as tendências de seus antecedentes imediatos, a cívica do avô e a humanista do pai, Assim se tornara um literato, um escritor livre. Pois a literatura não era outra coisa senão isto: a associação de humanismo e política, associação que se realizava com a maior naturalidade, visto o próprio humanismo ser política e a política significar humanismo... A essa altura das explanações, Hans Castorp escutava com grande atenção, esforçando-se por compreender tudo direitinho; pois esperava aprender finalmente em que consistia a crassa ignorância do cervejeiro Magnus e ficar sabendo porque a literatura era outra coisa que não 'belos caracteres'. Settembrini perguntou se os primos já tinham ouvido falar do Sr. Brunetto Latini, escrivão municipal de Florença, por volta de 1250, e autor de um livro sobre as virtudes e os vícios. Esse mestre fora o primeiro a esmerilar a cultura dos florentinos e a ensinar-lhes a oratória bem como a arte de dirigir a sua república conforme as regras da política. - Aí está, meus senhores! - exclamou Settembrini. - Aí está! - E passou a falar do 'verbo', do culto do verbo, da eloquência, que qualificou de humanidade. Pois o verbo era a honra dos homens, e só ele tornava a vida digna de seres humanos. Não somente o humanismo, mas também a humanidade em geral, toda dignidade humana, todo respeito pelos homens e toda estima que eles sentiam de si próprios, eram inseparáveis do verbo, e por conseguinte, da literatura... (- Está vendo? - disse Hans Castorp mais tarde ao primo. - Está vendo que na literatura o que importa são as belas palavras? Eu percebi logo...) - E dessa forma - prosseguiu o italiano - achava-se também a política ligada à literatura, ou melhor: tinha a sua origem na aliança, na fusão de humanidade e literatura, já que a bela palavra gerava a bela ação. Faz dois séculos - disse Settembrini - vivia no país dos senhores um velho poeta, um excelente conservador, que atribuía suma importância à beleza da caligrafia, porque segundo a sua opinião, esta conduzia à beleza do estilo. Deveria ter ido um pouco mais longe e dizer que um belo estilo conduz à belas ações. Pois escrever bem já era quase pensar bem, e daí a agir bem não havia muita  distância. Toda moralidade e todo aperfeiçoamento moral se derivava  do espírito da literatura, desse pundonor humano que era ao mesmo tempo o espírito da humanidade e da política. Sim, tudo isso era uno e indivisível, era uma e a mesma força e ideia, e podia ser resumido num único termo. Qual era esse termo? Ora, ele se compunha de sílabas familiares cujo significado e cuja majestade os primos, sem dúvida, nunca haviam compreendido. Seu nome era: civilização! E ao pronunciar essa palavra, Settembrini ergueu a amarelada mãozinha direita como quem faz um brinde.

O jovem Hans Castorp achava tudo isso digno de ser escutado - sem compromisso e a título de experiência apenas, mas em todo caso digno de atenção. Foi nesse sentido que falou com Joachim Ziemssen, o qual, porém, por andar com o termômetro na boca, não podia responder senão indistintamente, e que a seguir se mostrou por demais ocupado em decifrar os graus e inscrevê-los na papeleta, para que pudesse formular uma opinião acerca dos pontos de vista de Settembrini. Hans Castorp, porém, inteirava-se, cheio de boa vontade, dessas opiniões e abria-lhe o seu íntimo a fim de estudá-las; o que deixa ver quanta vantagem leva o homem acordado sobre o homem que dorme estupidamente - pois, nos seus sonhos, já acontecera diversas vezes a Hans Castorp tratar o Sr. Settembrini, à queima-roupa, de tocador de realejo, e procurar empurrá-lo com toda a força, porque 'era demais ali'. Mas, como homem acordado, ouvia-o atenta e cortesmente e esforçava-se com muita imparcialidade por suavizar e diminuir a oposição que nele desejava levantar-se contra as ideias e as exposições do seu mentor. Não se pode negar que tal oposição existia na sua alma; baseava-se em resistências antigas que sempre haviam operado ali e também em outras, resultantes da situação presente, das experiências ora indiretas ora secretas que Hans Castorp fazia ali de cima.

Que é o homem, e com quanta facilidade pode ser ludibriada a sua consciência! Como é perito na arte de perceber na própria voz do dever a licença para se entregar à paixão! Era por um senso de dever, por equidade, pela necessidade de um contrapeso, que Hans Castorp escutava os discursos do Sr. Settembrini, examinando, com muita complacência, as suas considerações quanto à razão, à república e à beleza do estilo, e dispondo-se a deixar-se influenciar por elas. Tanto mais lícito lhe parecia depois dar livre curso aos seus pensamentos e aos seus sonhos, a fim de que rumassem numa direção diferente e até agora oposta - e para formularmos desde já o resultado total do que suspeitamos ou adivinhamos, seja dito que escutava o Sr. Settembrini com a finalidade exclusiva de obter da sua consciência plenos poderes que esta primitivamente não lhe quisera outorgar. Mas, que ou quem é que se encontrava do lado oposto ao patriotismo, à dignidade humana e às belas letras, desse lado onde Hans Castorp pensava ter reconquistado o direito de dirigir seus pensamentos e seus atos? Ali se achava Clawdia Chauchat, indolente, carcomida, com seus olhos de quirguiz, e enquanto Hans refletia sobre ela - a palavra 'refletir' é, aliás, muito mansa para expressar o modo como, no seu íntimo, se ocupava com ela -, era novamente como se andasse de barca por aquele lago de Holstein, e dirigisse os olhos deslumbrados e confundidos pela luminosidade vítrea da margem ocidental, para a noite de luar, entremeada de brumas, dos céus do Oriente". Capítulo IV, páginas 178 a 182.

Muito obrigado Sr. Settembrini, muito obrigado Thomas Mann pela magnífica aula. Deixo ainda a resenha da obra. 

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/10/a-montanha-magica-thomas-mann-nobel.html

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