quinta-feira, 12 de outubro de 2023

A MONTANHA MÁGICA. Thomas Mann. Nobel - Literatura - 1929.

Releituras. Lembro que fiquei muito impressionado quando, ao final dos anos 1990, li A montanha mágica, o memorável e denso livro de Thomas Mann. Com certeza, eu incluiria este romance entre os melhores que a literatura mundial já havia produzido. Um clássico do humanismo, um romance de formação, no caso, a formação do jovem Hans Castorp, o personagem central. A primeira edição do romance apareceu no ano de 1924 e faz uma retrospectiva dos anos que antecederam à primeira Guerra Mundial. Thomas Mann nasceu em Lübeck, na Alemanha, em 1875 e morreu em Zurique, Suíça, em 1955. Em 1929 foi agraciado com o Nobel de Literatura.

A montanha mágica. Thomas Mann. Um livro de 1924. A Europa se prepara para a Grande Guerra.

O cenário do romance é a hoje conhecida cidade dos Alpes suíços de Davos, no sanatório de Berghof, que recebia pacientes com problemas pulmonares, oriundos de toda a Europa. À dor e ao sofrimento físico dos pacientes se somavam as divergências de ordem política, religiosa, cultural, econômica e social, manifestadas em acalorados debates. Creio que encontrei uma passagem que bem reflete as diferentes posições nesses conflitos, que inclusive levaram os dois personagens centrais a um duelo. Vejamos:

"A situação costumava melhorar quando se respirava uma atmosfera intelectual, quando havia discussões, quando era possível prender a atenção das pessoas que tomavam parte nos passeios, a um daqueles seus debates elegantes e ao mesmo tempo apaixonados, acadêmicos e todavia conduzidos num tom que faria supor tratar-se de questões tremendamente atuais e vitais. Essas contendas eram travadas pelos dois adversários (Settembrini - um humanista e Naphta - um jesuíta, digamos, da contra reforma), e enquanto duravam ficava neutralizada até certo ponto a presença da 'grande envergadura' (Peeperkorn - um hedonista), que não as podia acompanhar senão alçando as rugas da testa em sinal de pasmo, e intercalando exclamações zombeteiras, porém abruptas. E mesmo sob essas circunstâncias exercia ela a sua peculiar pressão. Lançava uma sombra sobre a palestra, que assim se via diminuída no seu brilho. Privava-a da sua essência" (p. 653-654). 

Eis os três personagens dos debates, que tinham nos primos Hans Castorp e Joachim Ziemssen os seus principais participantes, para não dizer, ouvintes. Settembrini era o homem do Iluminismo, do Progresso, do Humanismo, do Entendimento. Naphta era o conservador medieval, fanático religioso, encarnado num noviço jesuíta. Já Peeperkorn era o homem rico, folgazão e zombeteiro, disposto a tirar proveito do que ainda lhe restava de vida. Era ele o companheiro de viagem de Clawdia Chauchat, o personagem feminino do romance. No encontro dos dois, ou dos três, estão os pontos altos do romance, que tem no cotidiano do sanatório o seu longo enredo.

Se essa passagem pode ser tomada como definição do livro, também na página 653 (o total é de 801) temos uma frase de Settembrini que bem define a sua visão de intelectual, que é também, certamente, a de seu autor, sobre a essência da literatura: "A coragem do conhecimento e da expressão, eis o que é a literatura, o espírito humano". É dessa "coragem do conhecimento e da expressão" que brotam os grandes temas abordados ao longo do livro. Temas políticos, culturais, sócio econômicos, religiosos, filosóficos. Temas das dissonâncias humanas que levaram a humanidade à tragédia da Primeira Guerra Mundial. É nessa guerra que encontraremos o jovem Hans, nas páginas finais do livro:

"Caiu. Não, atirou-se ao chão, porque um cão dos Infernos chega uivando, um enorme obus, um asqueroso pão de açúcar, saído das trevas. Acha-se estendido, comprimindo o rosto no barro frio com as pernas escancaradas e os pés torcidos, colados ao chão. O produto de uma ciência barbarizada abate-se como o diabo em pessoa a trinta passos dele, penetrando obliquamente no solo, onde explode com espantosa violência e joga à altura de uma casa um jarro de terra, fogo, chumbo, ferro e humanidade despedaçada [...] E assim, no tumulto, na chuva, no crepúsculo, o perdemos de vista. Felicidade, Hans Castorp, enfermiço e cândido filho da Vida! Tua história terminou...".

Para te uma visão mais sistematizada do romance deixo as orelhas do livro: "Em 1952, já agraciado com o Nobel e o Goethe, Thomas Mann recebeu mais um prêmio: o Feltrinelli, concebido pela Academia dei Lincei, em Roma. Ao darem as razões de sua escolha, os acadêmicos italianos declararam que com aquele prêmio 'glorificavam um raro exemplo de realização viva do espírito humanista'.

Exatamente porque, como talvez nenhum outro escritor, encarna esse espírito, Thomas Mann é o maior romancista da língua alemã. E, entre suas obras, a que talvez melhor exprima o seu humanismo seja A montanha mágica.

Construído nos anos seguintes à Primeira Guerra Mundial, este romance é o mais completo painel de uma Europa enferma, à procura de uma unidade, de uma síntese espiritual e social, que seu próprio progresso tornou cada vez mais distante e inalcançável.

A ação transcorre na aldeia suíça de Davos-Platz, no sanatório Berghof. Aí se veem reunidos pela doença elementos de todas as raças e credos humanos. Aí se entrelaçam problemas, inquietações, sofrimentos, ilusões dos mais diversos matizes psicológicos. Aí, ainda que isolados do mundo da 'planície', os personagens, conscientemente ou não, padecem a influência dos acontecimentos de um continente dilacerado.

Hans Castorp, o herói, chega a Berghof em visita a seu primo. Ao seguir o conselho médico de que nada perderia se passasse alguns dias cumprindo o mesmo regime de vida dali, descobre, quase por acaso, que também está doente. Inicia-se assim seu período de adaptação. A existência levada no sanatório obedece a uma monotonia rígida, e o temperamento, já de si passivo, de Castorp encontra terreno fértil para expandir-se. Entra ele em contato com diferentes personalidades, dedica-se ao exame das ideias de cada uma delas, ao mesmo tempo que se põe a aprofundar os grandes temas da Fé, da Morte, da Ciência, da Filosofia, do Amor e do Tempo.

A evolução da doença passa a corresponder o desenvolvimento humano de Hans Castorp. Na medida em que aquela se instala em seu organismo, Castorp cada vez mais perde as características de um jovem burguês encarcerado nos hábitos e costumes de sua classe. Assume então uma postura intelectual em que se debatem as questões fundamentais feitas por todo homem que se interroga diante da vida.

A montanha mágica é, na verdade, o mais completo retrato de uma vida à procura de um sentido que a explique e justifique. Nada existe em si e por si mesmo; o mínimo gesto individual se conjuga a uma infinidade de ações e reações cuja exata medida é o próprio universo humano que o motiva, o recebe e o transforma. A salvação do homem só se faz quando, mesmo (ou sobretudo) frente ao poder da morte, todos  os seus atos se condicionam à busca da liberdade". Hans Castorp permaneceu no Berghof por longos e intermináveis sete anos.

O que eu teria a dizer após a releitura do livro mais de vinte anos após a sua primeira leitura? O livro é de um outro tempo. Ele foi escrito em 1924. Ele está às vésperas de seu centenário. Hoje os tempos são outros. O tempo se acelerou e com ele também as reflexões, especialmente àquelas que buscam um sentido para o humano. As descrições são minuciosas, detalhadas e com vários focos de interesse. A narrativa se encerra na monotonia da repetição diária das mesmas tarefas. Diria que não é uma leitura fácil.

E quanto à humanidade? Há entendimento? Termino de escrever este post quando novamente, já pelo quinto dia consecutivo "explode com violência e joga à altura de uma casa um jorro de terra, fogo, chumbo, ferro e de humanidade despedaçada", nos conflitos entre o Hamas - Israel - Hamas, sem se terem encerrado os confrontos entre a Rússia e a Ucrânia, para a festa do mundo da indústria armamentista e de quem mais resume o viver ao mero ganhar dinheiro. Triste humanidade. Quanta necessidade de reflexão, de humanismo e de busca de sentidos e significados. Lembrando que é em Davos que se reúne, anualmente, o Fórum Econômico Mundial.

Ah, sim! No meio do livro encontrei um recorte do jornal Folha de S.Paulo, assinado por Isabel Lustosa: A montanha mágica.  "Em Thomas Mann, fascinam-me os heróis falhados, diletantes, incapacitados para a vida prática. O mais bem acabado deles é Hans Castorp, protagonista de A montanha mágica, cuja internação em um sanatório o põe em contato com um novo código moral. Ali, a banalização da morte e o repouso absoluto revelam-se grandes libertadores dos instintos.

Castorp descobre que, apesar das vantagens da honra, as da desonra eram quase ilimitadas. Dois amigos que faz na montanha, Setembrini e Naphta, disputam seu espírito. Setembrini defende a razão e o Iluminismo contra a valorização da morte. Naphta acha, no entanto, que todas as fórmulas iluministas fracassaram e faz o elogio da religião contra a ciência e da tirania contra a liberdade.

No entanto, por meio do amor, pela russa Cláudia Chuchat - a disputa entre o apolíneo e o dionisíaco, entre o que fascina e assusta, o que seduz e causa repulsa é elemento recorrente na obra do escritor alemão, filho de mãe brasileira -, Castorp descobre que o respeito à morte e ao passado não pode orientar o futuro sem se confundir com impiedade. Iluminação que terá em meio à barbárie da Primeira Guerra Mundial, em que se chocaram as opções de Setembrini e Naphta". Não tenho a data da publicação, provavelmente de 1998, ano em que adquiri o livro.


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