terça-feira, 19 de agosto de 2025

ESPELHO CEGO. Robert Menasse.

Quando eu estava disposto a deixar a sala de aula em definitivo, quase que semanalmente eu visitava as livrarias. Estava de olho nas promoções. Comprava diferentes tipos de livros e nem sempre os motivos da compra estavam claros para mim. Um dos critérios pelos quais eu comprava era o da editora. Livros da Companhia das Letras eu sempre comprava. A Companhia era para mim, e ainda continua sendo, uma espécie de garantia de um bom livro. Sempre uma referência.

Espelho cego. Robert Menasse. Companhia das Letras. 2000. Tradução: George Bernard Sperber.

Um desses livros que comprei foi - Espelho cego. O autor, Robert Menasse, é um austríaco, com passagem pela Universidade de São Paulo, na qualidade de professor visitante, entre os anos de 1981 e 1986. Essa passagem lhe deu a ambientação para a escrita desse romance extremamente complexo. O autor nasceu em Viena, no ano de 1954. A edição alemã do livro data de 1991 e a brasileira, do ano de 2000. Hoje, o autor vive em Viena. os cenários do romance são as cidades de Viena e de São Paulo.

Os protagonistas do romance são o casal, Leo Singer e Judith Katz. Obsessões amorosas e filosóficas unem o casal. São de origem judaica, judeus austríacos. Ele nasceu em São Paulo e ela em Porto Alegre mas, ainda pequena, também viria a morar em São Paulo. Os pais se refugiaram no Brasil, fugindo das perseguições nazistas aos judeus na Europa. Os pais, embora bem sucedidos no Brasil, ao fim das perseguições, retornam à pátria de origem. Os acontecimentos maiores do romance, primeiramente ocorrem em Viena, onde as obsessões dos jovens efetivamente começam. Em São Paulo eles haviam conhecido um senhor de sobrenome Löwinger, que se tornará uma espécie de protetor de Leo. A grande obsessão de Leo era a de transformar o mundo, de forma definitiva. Hegel era o mote.

Para situar o romance, vamos à contracapa do livro. "Perdido no labirinto de espelhos da reflexão filosófica, Leo Singer, aspirante a filósofo, sai em busca da vida essencial como herói de uma epopeia inusitada, cujos caminhos não são mais aqueles bem-aventurados, iluminados pelas estrelas do mapa original do firmamento da filosofia. Os acasos deste périplo iniciado em Viena o conduzirão ao Brasil pós-golpe de 1964. As contradições de uma realidade mergulhada em plena ditadura somam-se às da trajetória do herói, gerando episódios hilariantes, como o de ver-se subitamente promovido a renomado especialista na filosofia de Hegel capaz de prever o futuro por força de um monumental equívoco, gerado na sumária apresentação da Fenomenologia do espírito - obra capital do filósofo alemão - à imprensa nativa. Entretanto, buscando a expressão contemporânea do descompasso entre o indivíduo e o mundo, a narrativa ultrapassa os contornos da novela quixotesca que lhe serve de paradigma, fazendo irromper a tragédia em meio à farsa, o humor corrosivo em meio à graça do ridículo".

Em Viena, Leo tinha todo o tempo à disposição para a escrita de sua obra. Estava livre de preocupações financeiras, por uma mesada, dada pelos pais, mas com a devida mesura. A mãe o controlava, fato ao qual ele reagia, devotando-lhe um enorme ódio. A escrita estava travada. Suas leituras e fichamentos eram os temas das conversas intermináveis, que, inclusive, travavam as relações amorosas. Essa era a sua vida em Viena. Hoje nós o qualificaríamos como um chato.

A grande mudança vem com a morte do pai. A mãe o manda para São Paulo para cuidar das heranças lá deixadas. Inúmeros terrenos, muito valorizados com a especulação imobiliária. Tarefa para advogados, lhe dizia Löwinger, a quem ele reencontrara. Tinha, portanto, à disposição todo o tempo necessário para concluir o seu tratado filosófico. Mas nada conseguia escrever. A história mais uma vez se altera, quando Judith, que ele considerava morta, de repente lhe aparece à porta. Aí é que escrita travou de vez.

O romance é longo e, haja imaginação! Por incrível que pareça, ele é escrito num estalo só. São 379 páginas, sem divisão em capítulos e poucos diálogos curtos. Muitas reflexões inconclusas. Já quase ao final, refletindo sobre "as aporias da existência de um intelectual" ele abandona tudo. "Leo tinha abdicado de sua pretensão de escrever a continuação da obra de Hegel. Bastava-lhe a cátedra no bar (lá o aclamavam como professor), a qual lhe dava pelo menos a sensação de ter cumprido de alguma forma com essa pretensão" (Páginas 334-5).

Bem antes, porém, um fato ocorrido no dia 2 de outubro de 1968, o impediu de ser alçado para a consagração como um grande filósofo, o maior intérprete de Hegel no Brasil. Ele havia sido convidado para uma palestra na Universidade Mackenzie. Foi o dia da briga da Rua Maria Antônia, entre os estudantes da USP e o Comando de Caça aos Comunistas da Mackenzie. Maldita ditadura militar!

Creio que a essas alturas todos já imaginam que o romance só poderia terminar em tragédia. Vou apresentar apenas uma delas.  Leo consegue terminar o seu livro. Judith tinha anotado tudo. Havia feito uma memorável síntese, que Leo apenas editou. Mas, o resultado...! "... E foi então que apareceu o livro de Leo. A fenomenologia da desespiritualização. História do desaparecimento do saber. Semanas cheias de tensão se passaram, durante as quais não foi publicada nenhuma resenha. Finalmente Leo redigiu um artigo, no qual chamava a atenção para o conteúdo e a importância do livrinho, e o publicou na revista Leia livros, como opinião de redação, claro que teve que pagar por isso. Deixou alguns exemplares dessa edição da revista no bar.

No fim do ano, recebeu a primeira prestação de contas da editora. Tinham sido vendidos cinco exemplares. As bibliotecas das universidades de São Paulo e de Porto Alegra tinham comprado um exemplar cada. Só três exemplares haviam sido vendidos nas livrarias.

Quatro meses depois Leo ficou sabendo que sua editora tinha falido" (Página 378, a penúltima página).

O espelho ou o Espelho cego, do título está onipresente ao longo do livro. Reflexos, simulações, jogos, espelhos quebrados. O título em alemão: Selige Zeiten, brüchige Welt. As observações sobre a ditadura militar são fantásticas, um fato a mais para tornar o livro muito valioso. 

 

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