quinta-feira, 7 de agosto de 2025

O Gattopardo. Tomasi di Lampedusa.

"Tenho porém que confessar: quando ali em Aspremonte me vi diante daquela centena de descamisados, alguns com cara de fanáticos incuráveis, outros com jeito de revoltosos profissionais, fiquei feliz que as ordens coincidissem com aquilo que eu mesmo pensava: se não tivesse mandado atirar, aquela gente teria feito picadinho dos meus soldados e de mim, e o desastre não seria grande, mas acabaria provocando a intervenção francesa e a austríaca, uma confusão sem precedentes em que desabaria este Reino da Itália que se formou por milagre, não se sabe como" (Página 274). A fala é de Pallavicino, militar que participara da batalha.

O Gattopardo. Tomasi di Lampedusa. BestBolso. Tradução: Marina Colassanti.

Essa passagem do livro indica o seu tema principal, as lutas em torno da unificação italiana. Aspremonte foi uma das batalhas em que Garibaldi, vindo da Sicília, no rumo de Roma, venceu as tropas do reino italiano. Como este é o tema principal vamos a uma pequena contextualização em torno dessa unificação, iniciada no ano de 1860. Um tema bem complexo. Vejamos a situação anterior ao movimento.

O atual território italiano era fragmentado em diversas cidades estado (reinos, principados, repúblicas) onde predominava fortemente uma economia agrícola e não havia um sentimento de unidade nacional. A fragmentação resultava em fragilidade, que despertava a cobiça das potências já estabelecidas como a Áustria e a França. Os reis borbônios, que tanto aparecem no romance, é uma alusão aos reis Bourbons. Um desses estados tomará a dianteira: o reino do Piemonte-Sardenha. A capital do Piemonte é a cidade de Turim. Ali também está em marcha uma processo de industrialização. Alguns nomes ligados ao processo: o rei Vitório Emanuel II, Mazzini, o intelectual e ideólogo do movimento, e pelo grande chefe militar, Garibaldi, fundamental nas lutas na Sicília e em todo o sul. Garibaldi, o aclamado herói de dois mundos, é velho conhecido dos brasileiros por sua participação na Revolução Farroupilha (1835-1845) Em 1861 será proclamada a monarquia constitucional da Itália, sendo Vitorio Emanuel II o rei e Cavour o seu primeiro ministro. Creio que estes dados são suficientes para se ter a devida compreensão do romance.

Creio que podemos afirmar, sem erro, que as lutas em torno da unificação italiana são, ou constituem o que se pode chamar de - a revolução burguesa na Itália. A partir desse dado vamos aos grandes personagens, aos protagonistas de O Gattopardo. Em primeiríssimo plano aparece Dom Fabrício Salina, o nobre todo poderoso de Palermo, na Sicília. Pertence, portanto, à nobreza decadente. Do outro lado, pela burguesia emergente, está a família Calogero Sedara. Muita atenção aos personagens mais próximos: Tancredi, o sobrinho de Dom Fabrício e Angélica, a bela filha de Dom Calogero. Os personagens coadjuvantes serão os ligados à família Salina, mulher, filhos e em especial as três filhas, com destaque para Concetta, o padre Pirroni, um jesuíta e, não dá para esquecer de Bendicò, o onipresente cachorro da nobre família.

Creio que o enunciar dos personagens já dá uma pista fabulosa em torno da trama, mas vou dar mais uma. "Se nós não estivermos presentes, eles aprontam a República. Se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude. Fui claro"? (Página 69). Assim proclama Dom Fabrício. E um pouco mais adiante ele pergunta: "E então, o que vai acontecer? Negociações pontuadas por tiroteios quase inócuos, e depois tudo continuará igual quando tudo terá mudado" (Página 73).

Como assim? Mudar para não mudar? Em outras palavras, depois da unificação consolidada, tudo continuará igual. Para isso, basta apenas usar muita astúcia. O casamento será o grande instrumento. Fabrício entrará com o noivo, Tancredi, enquanto que a bela Angélica representará a aliança com a burguesia. A permanência do estado de coisas estará garantida. Os casamentos, o seu fazer e desfazer, não foram sempre marcados pela utilidade? Coitada de Concetta!

O romance é de autoria de Giuseppe Tomasi di Lampedusa (Palermo, 1896 - Roma, 1957) e o seu livro aparece no ano de 1958. Veio acompanhado de muita polêmica. O livro está dividido em oito partes, com os temas bem marcados. Não é muito longo. A edição da BestBolso, que eu li, tem 348 páginas, com muitas notas de introdução e posfácio. Os acontecimentos dos capítulos são datados, o que facilita bastante.

"Nunc et in hora mortis nostrae. Amen. Assim começa a primeira parte (Maio-1860). Um capítulo maravilhoso sobre os costumes da Sicília, a fantástica Trinácria do tempo dos gregos. O final da oração da Ave Maria nos indica a força do catolicismo na ilha. Dos costumes deve-se ressaltar o patriarcalismo e o poder absoluto e incontestável de Dom Fabrício. Na segunda parte (Agosto-1860), a família vai passar férias na vila de Donnafugata, a resplandecente propriedade dos Salina. Na terceira parte (Outubro-1860) a questão italiana nos é apresentada. Os resultados do plebiscito, com o fabuloso resultado de 512 sim contra 0 não, embora sob protestos de que alguns votos no não, tenham sido transformados em sim. Também veremos Tancredi se decidindo por Angélica, em detrimento de Concetta, sob fortes protestos de sua mãe.

A quarta parte (Novembro-1860) se constitui num extraordinário capítulo em que é relatado o acordo nupcial, costurado por Dom Fabrício. Este também recebe a visita de um agente do Piemonte, junto com um convite para o senado, que ele gentilmente recusa, para "não enganar a si próprio". Ao menos é isso que ele afirma. A quinta parte (Fevereiro-1861) é dedicada ao padre Pirroni. Na sexta parte (Novembro-1862) é mostrado um baile, em que brilham Tancredi e Angélica, enquanto Fabrício e o coronel Pallavicini confabulam longamente. E um parágrafo notável sobre os resultados da unificação, nas palavras do coronel: "O Senhor não esteve no continente depois da fundação do reino? Sorte sua. Não é um belo espetáculo. Nunca estivemos tão divididos como desde que estamos unidos. Turim não quer deixar de ser capital, Milão acha nossa administração inferior à austríaca, Florença teme que lhe levem as obras de arte, Nápoles chora pelas indústrias que perde, e aqui, na Sicília, está em gestação algum grande, irracional desastre..." (Página 276).

A sétima parte (Julho-1883) é dedicada ao fim, à morte de Fabrício, sem antes passar por suas mais ricas reminiscências. Morte com assistência de padre, confissão, comunhão e encomendação. A oitava e última parte (Maio- 1910) também é fantástica. É dedicada às três filhas Salina, nos seus setenta anos. Referência especial a Concetta e as mágoas de uma vida inteira. Psicanálise pura. Fanatismos religiosos e correções por parte das autoridades eclesiásticas. Apenas cinco das 74 relíquias que acumularam foram reconhecidas.

O Gattopardo é uma referência a Dom Fabrício e ele está no brasão da família Tomasi. Mas há no livro uma passagem notável referente ao Gattopardo: "...e depois será diferente, porém pior. Nós fomos os Gattopardos e os leões; os que vão nos substituir serão pequenos chacais, hienas; e todos, Gattopardos, chacais e ovelhas continuaremos a crer que somos o sal da terra" (Página 224-5).

Quando se conclui o processo da unificação italiana? Nos conta a história, que isso ocorreu com a conquista de Roma, em 1870. Mas eu diria que ela ainda está em curso. Em 2012 viajei pela Itália por quase um mês. Uma semana foi dedicada a fabulosa Sicília. Num dos trechos, tivemos um guia basco. Um primor no seu ácido humor. Nos contava ele que a Itália ainda estava longe de ser um país unificado. O sul brigava com o norte e o norte brigava com o sul. E, tanto o norte quanto o sul, brigavam com Roma. O Gattopardo é um livro imperdível. Absolutamente ímpar. Mudar para não mudar.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado pelo comentário. Depois de moderado ele será liberado.