A vez continua sendo a dos livros não lidos, encontrados em minha biblioteca. Desta vez a escolha recaiu sobre um livro maravilhoso e, pelas atuais circunstâncias históricas, extremamente atual. Trata-se de O Tirano, do professor italiano Valério Mássimo Manfredi. O cenário do livro é a fantástica ilha italiana da Sicília, ou a Trinácria, o seu nome original do tempo dos gregos. A cidade é a de Siracusa e o Tirano é Dionísio. Muita história para contar. Vamos a primeira dica, a da contracapa:
O Tirano. Valério Massimo Manfredi. Rocco. 2005. Tradução: Mário Fondelli."Sicília, 412 a.C., começa o duelo infinito entre um homem e uma superpotência. O homem é Dionísio de Siracusa. A superpotência é Cartago, dona dos mares e megalópole mercantil. Com pouco mais de vinte anos, Dionísio, nas fileiras do exército siracusano, é forçado a testemunhar o pavoroso massacre de Selinunte devido às indecisões do governo democrático. A indignação e a raiva alimentam nele três férreas convicções. As democracias são ineficientes. Os cartagineses são os inimigos mortais do helenismo e precisam ser escorraçadas da Sicília. O único homem capaz de levar a cabo tal façanha é ele próprio".
O livro se estende por 31 capítulos, ao longo de 330 páginas. Mas antes um pouco de história. Observemos a data acima citada: 412 a.C.. A hegemonia grega já estava consolidada, após a sua vitória nas guerras médicas, as guerras contra os persas. Atenas era a mais importante das cidades, mas viu o seu poder ser contestado por outras cidades, fato que ocasionou as chamadas guerras do Peloponeso, que terminaram com a vitória de Esparta e depois de Tebas. Em Atenas dominava a democracia. Na filosofia, o grande fato foi o julgamento e a condenação à morte de Sócrates, no ano de 399 a.C. e a ascendência de Platão, que inclusive tem os seus incidentes em Siracusa, como veremos. No teatro ainda se vivia o grande momento da tragédia.
Na Sicília havia várias cidades sob a influência da cultura grega, embora o fenômeno do helenismo propriamente dito, viria apenas lá adiante, junto com as conquistas de Alexandre Magno. A cidade dominante da cultura grega, que inclusive vivia o fenômeno da democracia, era Siracusa, mas também se destacava Agrigento, com o seu famoso Vale dos Templos. Já a disputa pelo domínio da Sicília, ou seja, a grande rival de Siracusa, era a cidade de Cartago (hoje nas proximidades de Túnis, a capital da Tunísia), a dona dos mares e do comércio marítimo. Dominavam a parte norte da ilha. As guerras eram constantes. Terminado um conflito, já se preparavam para novos e mais graves conflitos. Dionísio não se conformava com a situação. Culpava a democracia reinante na cidade, especialmente a lentidão na tomada de decisões, em momentos que exigiam agilidade extrema. Muitas vezes, quando as decisões eram tomadas, os fatos já tinham se sobreposto ao problema. Outra indignidade sua era relativa à acomodação dos dirigentes políticos. Estavam muito mais preocupados com a manutenção de seus postos do que com os efetivos problemas da população.
Dionísio, com o tempo toma conta da situação. Quando ele chega ao poder, os cartagineses já haviam dominado as cidades de Solinunte e Imera e, já sob o seu comando, ele próprio acumula derrotas na poderosa Agrigento e em Gela e Kamárina. Essas narrativas já incorporam o coração do livro. Outras partes são dedicadas ao comportamento do tirano. Monocrático e implacável. Não ouve ninguém. Celebra as mais espúrias alianças, inclusive com os povos bárbaros, atacando as próprias cidades helênicas. Afasta-se de seus ajudantes mais próximos, inclusive Filisto, o sábio mais próximo e de Leptines, o irmão. O estreito de Messina, altamente estratégico, também será palco de lutas. Para isso busca o domínio da cidade de Regio, na Calábria.
Em momentos de paz, ele é bom governante. Expande a cultura grega e se torna, tanto poderoso por suas qualidades, quanto temido por seu autoritarismo. Também tem interesse pela cultura, especialmente pelo teatro, mas detesta os filósofos. Creio ser este o momento de falar de sua relação com Platão. O episódio tem a seguinte narrativa:
" - Esqueci de mencionar a coisa mais engraçada - disse. - O negócio de Platão.
- Platão? repetiu Filisto arregalando os olhos. - Estamos falando do grande filósofo?
- Ele mesmo. Estava viajando pela Itália nesta primavera e parou na Sicília, e aí em Siracusa. Recebeu muitos convites, como era de se esperar, nos círculos mais prestigiosos da cidade, e acredito até de alguma negociação da Companhia. Foi logo dizendo que o nosso luxo era deplorável: o hábito de comer três vezes por dia, de dormir com a mulher todas as noites, de morar em casas suntuosas demais. Ao mesmo tempo, numa conversa posterior começou a tratar dos vícios e da depravação das instituições num regime de tirania, especificando mesmo que no caso de não ser possível extirpar o mal, um caminho alternativo seria o de entregar aos filósofos a tarefa de educar o sucessor do próprio tirano, no intuito de fazer dele um estadista digno. Deu para entender? Estava praticamente se oferecendo como educador do jovem Dionísio". O relato continua com a afirmação de que os dois não chegaram a se encontrar e que o tirano mandou que ele fosse devolvido à Grécia, não sem antes recomendar que ele fosse vendido aos piratas. O relato termina desta forma:
"Por Heraclés! - Filisto exclamou pasmo. - Aos piratas?
Isto mesmo. Os discípulos tiveram de resgatá-lo num mercado de Egina, antes de o homem acabar não se sabe onde.
Filisto não pode evitar um sorriso ao lembrar um rompante de Dionísio: 'Os filósofos! Evito-os como a sujeira dos cães na rua" (Páginas 297-8). Como o visto, o ódio das ditaduras à filosofia vem de longe, ou, desde sempre.
A Companhia, a que a citação se refere é outra questão interessante. Dionísio era um de seus membros. Ela sempre intervinha em momentos decisivos. Em nota do autor, ao final do livro, Manfredi a relaciona com a origem da Máfia. É... Sicília, Calábria...
Ao final, o autor tece considerações acerca da democracia e da ditadura, pendendo para o lado da democracia. O argumento principal é o da sucessão. "Muito simples: não haverá um segundo Dionísio Tudo baseia-se nele, assim como o céu apoia-se nos ombros de Atlas. O melhor dos tiranos não pode ser preferível à pior das democracias. Ele não é substituível, e o dia que cair, a sua construção, por mais poderosa que seja, cairá com ele. É só uma questão de tempo" (Página 307). A educação do sucessor enseja uma bela discussão da educação sob os princípios do autoritarismo. Um bom tema para discutir num momento em que a ultra direita brasileira joga todas forças em cima de uma educação dita 'cívico militar'.
Uma série de mapas ocupa as páginas finais do Livro. Há muito tempo eu ouvia a afirmação de que se você efetivamente quer conhecer a Grécia, em sua parte de arquitetura, visite a Sicília. Eu pude constatar isso. Em 2012, no mês de julho eu me afastei definitivamente da sala de aula. Me dei um presente. Trinta dias pela Grécia e Itália. Uma semana na Sicília. Visitamos Taormina - Siracusa - Noto - Agrigento - Érice - Trápani - Monreale e Palermo. Terminamos numa viagem de Cruzeiro de Palermo a Nápoles. Deixo o post que fiz sobre a cidade de Agrigento e o seu fabuloso vale dos Templos. No mesmo post, tem também Siracusa. Um mergulho fantástico na cultura clássica. Desejo a todos essa oportunidade única.
http://www.blogdopedroeloi.com.br/2012/10/diario-de-uma-viagem-siracusa-noto-e.html
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