Um passeio pelo facebook me levou a este livro. O seu título e um breve comentário. Por que este título me chamou tanta atenção? Ele não deixa de ser um bom pedaço de minha formação inicial. Além disso ele me trazia uma das características mais fortemente presentes em mim nesta fase de minha vida: uma timidez paralisante e uma vergonha que me induzia a um desejo de invisibilidade quase absoluta. O resultado disso seria uma dificuldade enorme de uma inserção no mundo, ou então me reservaria um espaço de absoluta subordinação. Quanto sentimento de inferioridade! Eu nasci em Harmonia, então terceiro distrito de Montenegro, no Rio Grande do Sul.
A ideologia da vergonha e o clero do Brasil. William Cesar Castilho Pereira. Vozes. 2025.
Naquele tempo, nasci no ano de 1945, imperava o conceito de que uma família que não tivesse um filho padre, os pais não iriam para o céu. Eu era o filho mais novo, entre cinco irmãos. Coube a mim prover o passaporte de salvação de meus pais. E, ainda criança, fui para o seminário de Bom Princípio, continuando depois em Gravataí e terminando em Viamão. E lá se foram doze anos: admissão, ginásio, clássico (ensino médio) e a faculdade de filosofia. Eu nunca quis ser padre. Eu sonhava alto. Eu queria ser bispo. Ao final do ano de 1968 me defrontei com a primeira encruzilhada mais séria da vida. Fazer mais quatro anos de teologia ou enveredar pela carreira do magistério. Foi o que eu fiz. Abandonei os pagos e me enveredei pelo Paraná. Dois fatos ocorridos em dezembro de 1968. No dia 4 eu recebia o meu diploma de filosofia e no dia 13 ocorria o mais grave ataque à democracia de toda a nossa história. O AI-5.
Mas, vamos ao livro. Trata-se de A ideologia da vergonha e o clero do Brasil. O autor é William Cesar Castilho Pereira. Vejamos alguns dados biográficos seus, contidos na orelha da contracapa: "Mineiro, estudou psicologia e é doutor pela UFRJ. Psicólogo clínico, atuou por várias décadas como professor da PUC Minas. Foi docente da Faculdade dos jesuítas (Faje). Assessor em trabalhos comunitários e analista institucional. Assessor da Arquidiocese de Belo Horizonte e do Conselho Latino-americano - Bogotá - Colômbia (Celam) Escreveu pela Editora Vozes: Sofrimento psíquico dos presbíteros: dor institucional e Os sete pecados capitais à luz da psicanálise. Uma vida dedicada à formação, à compreensão do ser humano e das formas de atuação que deem sentido à vida. Com certeza, de bem com a vida. Ele pratica uma frase de Paulo Freire que eu aprecio muito: "É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal forma que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática".
É um livro que busca a superação. Uma frase ilustra bem o livro: "A esperança tem duas filhas lindas, a indignação e a coragem. A indignação nos ensina a não aceitar as coisas como estão. A coragem, a mudá-las". A frase é atribuída a Santo Agostinho ou a Pablo Neruda. O caminho percorrido entre a indignação e a coragem é longo e passa por toda uma formação teórica. De novo, Paulo Freire: "A leitura de mundo precede a leitura da palavra". Muita análise, muita indicação bibliográfica. A caverna de Platão, La Boétie e e seu Discurso sobre a servidão voluntária, Marx e o conceito do trabalho como práxis, a divisão social do trabalho e a divisão da sociedade em classes, a minha identidade como classe, a construção da minha individualidade e a superação da alienação pela tomada de consciência crítica.
Outra coisa notável do livro é a análise dos fatos que eu presenciei e vivi. A imensa grandeza do papa João XXIII (28 de outubro de 1958 a 3 de junho de 1963) com a convocação do Concílio Vaticano II, que teve continuidade com Paulo VI. Tempos de aggiornamento da Igreja. Um papa humilde, mas decisivo. Renunciou à sua infalibilidade e buscou soluções no coletivo de um concílio. Outra coisa foi a organização do clero brasileiro com a criação da CNBB (outubro de 1952). Antes as coisas da Igreja corriam meio desordenadas, meio espontâneas. Dom Hélder Câmara lhe conferiu organicidade. Aqui devo uma confissão: João XXIII foi uma das maiores presenças em minha vida.
Mas vamos a organização do livro: O livro, de 292 páginas, tem em seu corpo principal, cinco capítulos, além de introdução, do próprio autor, de agradecimentos e de um belíssimo prefácio assinado por Dom Leonardo Steiner, cardeal arcebispo de Manaus, que apresenta a vida como uma tecitura de transformações. Um longo tecer de relações. Na introdução o autor apresenta os três grandes temas do livro: a ideologia, a vergonha e o clero brasileiro. Os capítulos tem os seguintes títulos: 1. Regiões brasileiras e diferenças pastorais; 2. Questões etárias e raciais entre os presbíteros; 3. Aspectos familiares, sociais e educacionais; 4. Aspectos socioeconômicos dos presbíteros; 5. A ideologia da vergonha e o clero do Brasil. O posfácio, assinado por Dom Esmeraldo Barreto de Farias, bispo emérito de Araçuaí, MG, tem por título - Da vergonha à esperança: por uma igreja enraizada no Evangelho, em diálogo com as culturas. Na parte final, ricas referências bibliográficas.
Evidentemente que o quinto capítulo, que deu o título ao livro, é o que me levou à compra e à leitura. Mas, isso não significa que os demais capítulos não tenham a sua importância. Muito pelo contrário. No primeiro capítulo temos uma aula de realidade brasileira profundamente atual, que é uma verdadeira aula de sociologia, que inclusive recomendo aos professores da disciplina. O segundo capítulo é um mergulho na vida do clero e o terceiro e o quarto aprofundam este mesmo mergulho. A minha conclusão foi a de que a vida de um bispo não é uma vida fácil. Os padres são seres humanos que vivem dentro do mundo capitalista que estimula hiper-indivíduos, sob as marcas do narcisismo, do consumo e da vaidade. Lidam com dinheiro e perspectivas de futuro. São seres com instintos e com desejos. São humanos. Tentaram até formar um sindicato.
Agora, o quinto capítulo é um primor. Em primeiro lugar é um retrato desses tempos de pós-modernidade. Tempos líquidos. tempos de hedonismo e simultaneamente de contenção, tempos de cobrança de metas inalcançáveis. Tempos de muitas dores, especialmente dores psíquicas. Tempos de adoecimento. Tempos de melancolia e de acídia. Vou me ater um pouco mais a este termo. Duas elucidações: "Evrágio Pôntico (345-399) parece ter sido o primeiro pensador a identificar como "demônio do meio-dia". O período da tarde e as práticas de jejum, provavelmente, teriam influenciado mais a indolência dos monges do que as tentações do demônio. Na tradição da Igreja, Delumeau percebe a acídia como sonolência espiritual, dificuldades dos exercícios religiosos, tristeza que apagava da alma o desejo de servir a Deus". Triste.
A segunda ilustração é de Maria Rita Kehl: "A metáfora para a acedia - "demônio do meio-dia"- remete à fraqueza corporal produzida pelo prolongado jejum a que os monges se submetiam por amor a Deus. A fome, o calor, a prostração do corpo enfraquecido abatem também a vontade da "alma", que recua diante da impossível proposta de encontro puramente espiritual com Deus - o que comprova que nem tudo, da pulsão, pode ser sublimado". E por aí seguem as descrições dos sofrimentos psíquicos de nossos tempos. Aqui deve ser dito que não são somente os padres que são acometidos pela acídia. É uma doença comum a todos e que se abriga no conceito comum da depressão.
O último tópico do quinto capítulo tem por título - A vergonha, enquanto fecundidade de emancipação. Depois de percorridos os caminhos teórico-práticos dessa emancipação tem uma pequena frase, enorme em seu significado: "A maior solidão é a dos seres que não amam e não se abrem ao outro". Afinal, a vida é um enorme tecer de relações. Um livro para todos.
E, a resenha de um livro fantástico sobre as dores psíquicas modernas.
http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/01/sociedade-do-cansaco-byung-chul-han.html

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