A visita dos meus netos à minha biblioteca sempre é uma festa. Primeiramente eles queriam mexer nos livros mais volumosos, depois sempre quiseram ver e folhear o Drácula e na última visita quiseram saber dos livros que eu ainda não lera. Efetivamente eu tenho alguns livros não lidos. Eu os comprei em liquidações e os punha na lista de espera. Eles retiram os livros da estante e vou falando sobre eles. É uma curiosidade lindíssima de se ver. Momentos de raro encanto.
Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Johann Wolfgang von Goethe. Tradução: Nicolino Simone Neto. Editora 34. 2015.
Pois bem, dessa vez eles retiraram o Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Johann Wolfgang von Goethe. Eu o comprei no ano de 2017, certamente motivado pelo nome do autor, Goethe simplesmente. Outro motivo certamente foi o de se tratar de um romance de formação. Estes sempre mereceram de minha parte uma atenção toda especial. Coisas de quem dedicou uma vida inteira à formação. Me assombra o fato de hoje em dia a educação estar entregue a pessoas sem nenhuma compreensão do tema e somente por isso é que fazem o que estão fazendo. Isso quando não a usam para fins meramente comerciais. Isso é efetivamente criminoso. A formação de um ser humano é de uma responsabilidade suprema. E lá estou eu a ler este maravilhoso e complexo livro.
O romance tem uma história complexa mas de leitura extremamente atrativa. Por óbvio, Wilhelm Meister é o protagonista. Ele é filho de uma família da emergente classe burguesa. Mas ele não quer seguir os passos familiares e busca no teatro a realização de seus sonhos, apesar de não se sair mal nas missões que a família lhe confia. No roteiro entram ainda duas crianças maravilhosas, a pequena Mignon e o menino Felix. Atentem a esses personagens. O romance se passa na Alemanha, um país ainda relativamente atrasado e por isso o teatro analisado é o inglês e o francês. Hamlet então... Ainda..., os personagens burgueses se misturam com personagens da nobreza, que é bem vista. O romance é longo, 606 páginas. Ele é dividido em oito partes ou livros. Os cinco primeiros mostram Wilhelm envolvido com o teatro, o sexto é dedicado à formação feminina e os dois últimos, à Sociedade da Torre, com certeza, os mais interessantes e significativos.
O livro que eu li é da editora 34, uma editora que prima pela qualidade. Ele tem uma bela apresentação, de autoria de Marcus Vinícius Mazzari e um primoroso e valorizado posfácio, de ninguém menos do que Georg Lukács. Este posfácio é muito esclarecedor. Ele historia o romance, o data e o situa. O primeiro dado importante é a sua caracterização como um romance de transição. Acompanhemos os primeiros apontamentos de Lukács: "O Wilhelm Meister de Goethe é o mais significativo produto de transição da literatura romanesca entre os séculos XVIII e XIX. Exibe traços de ambos os períodos de evolução do romance moderno, tanto ideológica quanto artisticamente, na verdade". As próximas linhas são dedicadas à escrita da obra, que apareceu no ano de 1795-1796, mas cuja escrita começou bem antes. Vejamos:
"As origens desse romance remontam decerto a época bem anterior. A concepção e possivelmente também as primeiras tentativas de redação podem ser comprovadas já em 1777. Em 1785 já estavam escritos os seis livros do romance - A missão teatral de Wilhelm Meister. Essa primeira versão, perdida durante muito tempo e redescoberta só em 1910 por um feliz acaso, oferece a melhor possibilidade de esclarecer em que momentos artísticos e ideológicos se manifesta aquele novo caráter transitório de Os anos de aprendizado". Que tempos são estes? Uma velha mania minha de professor era a de sempre perguntar pelo fato mais importante ocorrido no entorno das datas apresentadas. Fica mais fácil. É evidente que o fato mais importante nesse contexto é o da Revolução Francesa, ou melhor, o da Revolução burguesa da França, ocorrida no ano de 1789. Profundas mudanças.
A Revolução Francesa se enquadra dentro de acontecimentos que permitiram o surgimento de uma nova classe social, a partir da expansão comercial e dos descobrimentos marítimos e de um novo ordenamento ideológico que revolucionou as estruturas sociais do período: humanismo, renascimento, iluminismo, revolução científica. Tempos da Aufklärung. Tempos em que a razão prometia substituir a importância do trono e do altar. Tempos de emancipação, tempos de autonomia do ser humano.
Marcos Mazzari inicia o seu prefácio citando vários comentários sobre o livro e o enquadra dessa forma: "... Então o romance Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister perfila-se certamente na linha de frente dessas grandes obras literárias (as que fundam ou dissolvem um gênero). Pois ao publicá-lo entre os anos de 1795 e 1796, Goethe criou o gênero que mais tarde foi chamado de 'romance de formação' (Bildungsroman), a mais importante contribuição alemã à história do romance ocidental". Lukács, no posfácio confirma que se trata de um romance de educação, de formação: " Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister é um romance de educação: seu conteúdo é a educação dos homens para a compreensão da realidade".
Mas Lukács, um pouco antes dessa afirmação, já assim se expressara sobre a centralidade da obra; "Assim, coloca no centro deste romance o ser humano, a realização e o desenvolvimento de sua personalidade, com uma clareza e concisão que dificilmente um outro escritor haverá conseguido em alguma outra obra de literatura universal. É claro que essa visão de mundo não é propriedade particular de Goethe. Ela domina antes toda a literatura europeia, desde o Renascimento; constitui o ponto central de toda a literatura do Iluminismo. O traço peculiar do romance goethiano mostra-se contudo no fato de que, por um lado, essa visão de mundo se põe no centro de tudo com uma elevada consciência, acentuada permanentemente de modo filosófico, ou pelo estado de ânimo, ou relacionada com a ação, a ponto de se transformar na força motriz consciente de todo o mundo configurado; e, por outro lado, essa peculiaridade consiste em que Goethe nos apresente como um devir real de seres humanos concretos em circunstâncias concretas essa realização da personalidade plenamente desenvolvida com que o Renascimento e o Iluminismo sonharam, e que na sociedade burguesa tem sempre permanecido como utopia".
Considero esses elementos fundamentais para a leitura e o início de uma compreensão desse monumental livro. Eu o considero como um livro, não apenas para ser lido, mas um livro para ser estudado em grupos, e, de preferência, acompanhado por algum professor de literatura, com algum aprofundamento em Goethe. Mas, ainda para uma visão inicial deixo a contracapa do livro.
"'Ponto culminante na história da narrativa'. É, em termos como esses que Georg Lukács se refere a Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, livro que deu origem a um novo gênero literário - O Bildungsroman, ou o romance de formação, a mais importante contribuição alemã à literatura mundial.
Reunindo e superando as formas narrativas anteriores, o livro conta o percurso aventuroso do jovem Wilhelm Meister em busca do pleno desenvolvimento de suas potencialidades. Atraído inicialmente pelo teatro, Meister abandona o ambiente burguês de sua família e, como ator e poeta, viaja por povoados e cortes da Alemanha, convive com os tipos mais diversos e experimenta várias ligações amorosas antes de cumprir uma trajetória que, repleta de reviravoltas, desenha um esplêndido painel da sociedade de seu tempo.
Com meios inéditos para a época, Goethe se debruça aqui sobre o problema da formação do indivíduo em condições históricas concretas. De fato, para o autor do Werther e do Fausto, a realização do homem não dependia apenas da harmonia de sua vida interior, mas do modo como este se insere no contexto social. Pois é exatamente esta rara aliança entre valores individuais e coletivos que constitui o cerne deste livro extraordinário, em que se combinam, como num concerto de Mozart, paixão e senso de medida, leveza e profundidade". E uma provocação: "Que és tu? Que tens tu?".
Não posso também deixar de apresentar um texto de Kant, que considero o mais belo texto da filosofia em que ele fala da Aufklärung como a maioridade do ser humano. Atingir esta maioridade é a finalidade primeira da formação.
Mas o Iluminismo também teve profundas contradições. A razão, rapidamente se transformou em razão instrumental. Vejam a resenha de um livro que desvela essas contradições.

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