segunda-feira, 28 de abril de 2014

Em Busca de Iara.

Iara era filha de uma rica família judaica de São Paulo. Sua educação escolar ocorrera em escola judaica e ela tinha todas as perspectivas e condições de viver uma vida absolutamente normal. Aos 16 anos já estava casada com um estudante de medicina. No documentário Em Busca de Iara,um irmão seu dá o depoimento de que em sua educação básica não havia nenhuma preocupação com a formação política. A grande transformação em sua vida ocorreu, quando foi estudar psicologia, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. A famosa, aquela localizada na rua Maria Antônia. O casamento logo deu vez para os debates políticos.
 
Cartaz promocional do filme documentário, Em busca de Iara. Sessão especial em São Paulo.

Iara Iavelberg e também o seu irmão se envolveram profundamente na efervescência política que se seguiu ao golpe de 1964 e que instaurou a ditadura militar. Com o endurecimento do regime, a partir de 1968, passou a integrar organizações clandestinas, que optaram pela guerrilha e a luta armada para combater a ditadura que ingressava em seus anos de chumbo. Sucessivamente pertenceu à POLOP, à VAR-Palmares e finalmente ao MR-8. Treinou para a guerrilha, junto com o capitão Lamarca, no Vale do Ribeira e por ele se apaixonou perdidamente. Viveram como companheiros ao final de suas vidas, abreviadas pela implacável ditadura. Iara foi a grande professora de marxismo e de política de seu companheiro.

Com o cerco se fechando em São Paulo, eles partem para a Bahia, para iniciar a fase final, a guerrilha rural que fatalmente derrubaria o regime opressivo, segundo suas esperanças. Iara vai viver em Salvador e Lamarca irá para o interior. Nesta fase já integram o MR-8. O aparelho em que Iara se encontrava em Salvador cai em mãos da polícia e ela morre nestas circunstâncias, em 1971. Lamarca morrerá executado, mais ou menos, um mês depois. Segundo a versão oficial, Iara optou pelo suicídio, em vez de se entregar para a polícia. O laudo cadavérico nunca foi encontrado, apenas algumas anotações.
Divulgação

O seu enterro ocorreu em São Paulo, na ala dos suicidas do cemitério israelita. A versão do suicídio nunca foi aceita pela família e o fato de ser enterrada na ala dos suicidas causou muitos constrangimentos aos familiares. Alguns, inclusive, abandonaram o Brasil, em consequência. Esta é a história. E é aí que começa a luta em busca da verdadeira versão da morte de Iara. Desmentir a versão oficial e estabelecer a verdade é a grande finalidade deste documentário, Em busca de Iara.

Mariana, filha de Rosa, irmã de Iara e, portanto, sobrinha de Iara, é que se empenhou na realização do documentário do qual é produtora, junto com o diretor Flávio Frederico. Sete anos foram consumidos em pesquisa para a sua realização. Parece ser uma questão de honra familiar estabelecer a verdade em torno da morte de Iara. As pesquisas buscaram documentos históricos, notícias da imprensa da época, entrevistas com os jornalistas que fizeram a cobertura, com os familiares e com os companheiros irmanados na mesma luta. Chamou-me muita atenção nestes depoimentos, especialmente os da irmã e de um médico simpatizante, sobre as convicções que ela alimentava e a crença absoluta de que, em muito breve, sairiam vitoriosos nesta empreitada.

Em 2003, por decisão judicial, o corpo de Iara é exumado. O corpo de Iara, quando de sua morte fora entregue à família em urna lacrada. Na exumação os legistas desmentem a versão do suicídio, constatando a distância em que o tiro que a vitimou foi dado. A distância era incompatível com o fato de ela mesmo ter atirado em si. Assim, a família obteve a remoção de sua sepultura, da ala dos suicidas, para repousar junto a seus pais. Creio que, para a família, esta foi a maior vitória.
Capitão Lamarca
Iara foi ainda mais procurada pela organismos da repressão depois de ser a companheira de Lamarca.

Mas resta ainda uma questão muito maior. Hoje é fartamente sabido que no período da ditadura militar a tortura era uma política de Estado e uma prática comum, assim como houve também pessoas desaparecidas e outras versões de suicídio, como a do jornalista Vladimir Herzog, por sinal também judeu, e que, pela ação do rabino Henry Sobel, que, recusando a versão do suicídio, não o enterrou na ala dos suicidas do cemitério judaico, num episódio memorável. Em nome da lei da Anistia, de agosto de 1979, todas as ações praticadas neste período, de ambos os lados, seriam beneficiados com a lei. Mas existe uma legislação superior, que estabelece crimes imprescritíveis, como é o caso dos crimes de tortura cometidos pelo Estado.

Outra coisa é a questão da verdade. Muitas verdades já desmentiram versões falsas e que foram falseadas exatamente em nome do ocultamento de atos hediondos praticados. A Comissão Nacional da Verdade, bem como as comissões estaduais estão desenvolvendo um trabalho memorável de restauração da memória e da verdade, mas ainda não se sabe sobre o que será feito após a verdade restabelecida. Em outros países que também sofreram horrores semelhantes a legislação já está mais avançada.

Neste sentido o documentário é notável. Ele resgata não só a verdade para o círculo familiar de Iara, o que por si só já é bastante, mas ele presta uma enorme contribuição para que o Brasil, ao conhecer a sua verdade, não mais repita a possibilidade de que tamanhas atrocidades e tormentos possam se repetir. O diretor Flávio Frederico e, especialmente a Mariana Pamplona, produtora e sobrinha de Iara, merecem um tributo de gratidão de todos os brasileiros que prezam  os valores da democracia, da liberdade e da verdade.





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