sexta-feira, 14 de outubro de 2016

O Lobo da Estepe. Hermann Hesse.

A leitura de O lobo da estepe marca um reencontro com Demian, que agora está com cinquenta anos. Ou dizendo claramente, um reencontro com Hermann Hesse, agora com cinquenta anos. Se o jovem Demian se confrontava com os primeiros momentos em seu processo de socialização na cultura vigente, em que o mundo luminoso do apolíneo se confrontava com o mundo das trevas do dionisíaco e em que o jovem mostrava uma clara preferência pelo dionisíaco, agora Harry Heller se confronta com o Lobo da estepe, que representa o seu lado animal, em conflito com o processo civilizatório.
Li esta edição da BestBolso. Tem um prefácio do tradutor.

Se em Demian o jovem tinha problemas de se encontrar consigo mesmo, pois, "nada repugna tanto ao homem do que seguir pelo caminho que o conduz a si mesmo", agora o conflito de Harry consiste em juntar as peças de sua vida no teatro mágico da vida  de um jogo de espelhos em que Harry se vê refletido. Só que agora o número das peças é infinitamente maior.

Hermann Hesse escreveu Demian em 1919 e O Lobo da estepe em 1927. É o período do entreguerras, um período absolutamente sombrio. Em tempo de nacionalismos exacerbados, Hesse se manifestava  pacifista, antibelicista e humanista. O mundo não o compreendia. Seria pela guerra que a Alemanha mostraria a sua grandeza. Hoje o mundo conhece esses resultados. Hesse, quando escreveu O Lobo da Estepe, se encontrava autoexilado na Suíça.

O livro é composto de duas partes. Na primeira, o jovem Harry Haller busca abrigo numa pensão em que fica hospedado por quase um ano. É um senhor idoso (cinquenta anos na época já era um idoso) de hábitos solitários e burgueses. Apreciava bons vinhos e pouco se dava a conversas. Dedicava-se a fazer pesquisas. Quando foi embora foi encontrado um relatório sob o título de Anotações de Harry Haller - Só para loucos. Esta é a longa segunda parte do livro. Tudo leva, já a partir das primeiras páginas, para o Teatro mágico, com entrada para os raros, só para os raros, só para os loucos.

Das anotações de Harry Haller contam os seus poucos encontros e os muitos desencontros em sua vida, da vida de um intelectual refinado, grande apreciador de Goethe e de Mozart, que vive em briga consigo mesmo e com o mundo dito civilizado que emergira do pós primeira guerra mundial. Marca o encontro com Hermínia, que lhe apresenta a jovem e bela Maria, com quem divide os raros momentos de encontro com o humano. Passa por profundas críticas ao mundo da racionalidade e dos valores burgueses, que, no entanto, estão nele entranhados.

O tenebroso ocorre quando ele penetra no teatro mágico e se confronta com a vida, que consiste em arrumar as peças de um grande jogo em que faz as suas regressões. É o mundo em que se abre uma das feridas narcísicas da racionalidade, com o surgimento da psicanálise. Neste teatro mágico penetra no mundo dos imortais, trocando conversas com Mozart, o seu grande ídolo. Em passagens anteriores de seu relatório, o encontro se dava com Goethe.

O livro passa pelos grandes temas de sua época. Lembrando que o livro foi escrito em 1927. A morte é o tema onipresente, especialmente a sua busca através do suicídio e até do homicídio, que lhe é solicitado por Hermínia, quando a ela se vincula por uma relação amorosa. Nas anotações também se trava uma interessante guerra com o mundo da indústria, com a indústria automobilística. Uma guerra de muitas vítimas. Tudo isso ocorre no palco do teatro mágico, inclusive a cena do assassinato de Hermínia.

Por ele Harry é condenado. Vejamos a sua condenação: "Em consequência, condenamos o mencionado Sr. Haller à pena de vida eterna e à proibição por 12 horas de entrar em nosso teatro. Tampouco poderemos poupar ao condenado o castigo de lhe rirmos na cara. Senhores todos juntos: um, dois, três!". Algumas linhas adiante a sua pena está melhor explicitada: "O senhor está disposto a morrer, seu covarde, mas não a viver. Ao diabo! Mas terá de viver! Seria bem merecido que o condenássemos à pena máxima". E segue uma das grandes críticas ao mundo burguês vigente, quando Haller pergunta qual seria esta pena máxima. Vejam a resposta, que é dada por Mozart, no encontro com os imortais:

"Poderíamos, por exemplo, ressuscitar a moça e casá-lo com ela. Não, a isso não estaria disposto. Seria uma desgraça". Esta passagem me fez lembrar a hipócrita cena da sessão da Câmara dos Deputados, do dia 17 de abril de 2016, quando os deputados votaram o impedimento da presidente Dilma, em homenagem aos mais altos valores da nossa sociedade, que, por sinal continuam os mesmos, ao lembrarem e dedicarem seus votos às suas esposas e às suas famílias.

O livro deve ter causado muitas polêmicas. O próprio autor incluiu no livro um posfácio em que fala da recepção do livro e sobre a sua compreensão/incompreensão. Vejamos o seu último parágrafo: "É claro que não posso nem pretendo dizer aos meus leitores como devem entender minha história. Que cada um nela encontre aquilo que lhe possa ferir a corda íntima e o que seja de alguma utilidade! Mas eu me sentiria contente se alguns desses leitores pudessem perceber que a história do Lobo da Estepe, embora relate enfermidade e crise, não conduz à destruição e à morte, mas, ao contrário, à redenção". Lembrando que, ao nihilismo, Nietzsche propunha a superação através da vontade de poder e do eterno retorno. Mas vamos parar por aí.

Uma última observação, quanto a concessão do Prêmio Nobel de Literatura em 1946. Hesse teve um padrinho, Anders Österling, o secretário da Academia. Ele refreou o seu entusiasmo com o escritor defendendo a ideia de que ele seria merecido não pelo seu caráter inovador mas pela poesia "em que o melódico se funde com uma vaga espiritualidade simbolista". Esta informação nos é dada por Ivo Barroso, no prefácio do livro. Ele também nos fala do choque que a obra causou "com a sua temática ousada, em que há referências explícitas ao uso de drogas e a comportamentos eróticos e homossexuais pouco frequentes nas obras sérias de então".

O Nobel teria sido concedido especialmente pelo seu livro O Jogo das contas de vidro. Quero confessar ainda que eu gostei mais de Demian do que de O Lobo da Estepe. 

2 comentários:

  1. Esse livro serviu como inspiração para o Helinho Pimentel e o saudoso Ivo Rodrigues criarem um dos maiores clássicos da música paranaense. https://www.youtube.com/watch?v=96IaxMvHaTA

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  2. Muito obrigado, Marcos Anubis pela sua contribuição. Curitiba já foi um centro cultural importante nestes tempos do Leminski e do Ivo (Blindagem) e da nossa sempre Orquestra Sinfônica do Paraná.

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