Estes dias, numa roda informal de conversa, discutíamos o atual momento desolador da política brasileira. A questão era ver se já houve, na história deste país, algo semelhante ao que estamos passando hoje. Óbvio que nos referíamos ao surto de ignorância que assolou o país com a eleição do mais ignorante dos candidatos a presidente já registrados ao longo de toda a nossa história. E o mais incrível, ele venceu. Disso se deduz...
A capa da revista Cult nº 244, onde se encontra a coluna de Wilson Gomes.
A capa da revista Cult nº 244, onde se encontra a coluna de Wilson Gomes.
A minha ponderação foi que, embora tivéssemos tido governos conservadores e, mesmo ditaduras, nunca tivemos um governo nitidamente antiintelectual, como já ocorrera na história dos Estados Unidos. O governo Bolsonaro seria o primeiro. Confesso que eu não havia percebido todo o alcance da questão. O atual momento vivido é muito pior, infinitamente pior. Está praticamente fora do alcance da imaginação. Me dei conta disso, ao ler a coluna de Wilson Gomes, na revista Cult, nº 244, de abril de 2019, sob o título de Fake news, crise epistêmica e epistemologia tribal. É estarrecedor. Vivemos uma crise epistêmica, não provocada pela dúvida cartesiana, mas simplesmente, a negação do conhecimento, bem como todos os caminhos traçados ao longo de sua construção, os caminhos da racionalidade ocidental. Além da negação desta racionalidade, são negados e vilipendiados também todos os espaços e agentes de sua construção, como as escolas, universidades e agências de pesquisa científica e tecnológica. O mesmo ocorre com os órgãos de informação e dos espaços culturais e artísticos. Esta é a razão da existência de tanto ódio.
"À raiz de tudo", afirma Wilson Gomes, "está o fato de que uma parcela cada vez maior de pessoas no mundo acredita surpreendentemente em um monte de histórias malucas, usando-as para tomar decisões políticas (escolhas eleitorais, apoios à políticas públicas) ou para fomentar a guerrilha política permanente entre lados e facções". E numa espécie de síntese de seu texto, em destaque lemos: "Como os grupos ultraconservadores promovem a confusão entre o verdadeiro e o falso e buscam desacreditar o conhecimento intelectual e científico".
O mundo sempre foi bom em inventar mentiras, afirma Gomes, mas a diferença está hoje, na possibilidade de sua rápida propagação pela, cada vez maior, digitalização da vida. Ainda na abertura de seu texto elenca algumas da fake news, como o pizzagate, pelo qual se alardeou que os democratas tocavam uma rede de prostituição infantil a partir de uma pizzaria de Washington, ou ainda, que os mesmos democratas estavam envolvidos com uma organização internacional de tráfico de crianças, que Hilary Clinton contava com vários assassinatos em sua biografia e que Obama, de fato, era muçulmano e que não nascera em território estadunidense. Ou ainda, que Trump teve roubados milhares votos e que um movimento antifascista desejava iniciar uma guerra civil, promover a derrubada Trump, matar brancos e implantar uma ditadura socialista. Vejam bem, isto tudo nos Estados Unidos e sempre envolvendo os conservadores. Esta nova realidade é uma invenção conservadora.
Um pouco a frente, Gomes se volta ao Brasil e aponta o sucesso do Kit Gay e da mamadeira de piroca na campanha eleitoral de Bolsonaro, alertando para os perigos que o PT representava no estímulo a uma iniciação sexual precoce, para a homossexualidade ou para se levar uma vida devassa. Outras fakes ainda diziam que Jean Wyllys havia contratado Adélio Bispo para matar Bolsonaro e que ele fora o coordenador da campanha de Dilma Rousseff, em sua reeleição. E ainda, que o mesmo Jean Wyllys teria apresentado um PL propondo uma revisão da Bíblia. Já Manuela D'Ávila teria profetizado o fim do cristianismo e que "somos mais populares que Jesus Cristo neste momento". E, ainda, mais outra afirmação de Jean Wyllys de que "a pedofilia é uma prática normal em diversas espécies de animais, anormal é o seu preconceito". Outras aberrações foram mais corriqueiras, como não acreditar no aquecimento global, que a terra seja redonda ou no valor das vacinas.
O objetivo disso tudo é claro. Confundir o povo. Muitos já não tem condições de diferenciar o falso do verdadeiro e o certo do errado. O mais grave é que os critérios e as referências fundamentais em que o mundo se firmava estão sendo removidos. É a isso que Gomes chama de crise epistêmica. Contra os critérios e referenciais históricos estão sendo apresentadas as chamadas verdades tribais, que simplesmente são afirmadas. Outros termos já consagrados são os de "morte da verdade", ou as "falsidades da era Trump".
O autor ainda observa que não se trata efetivamente de uma crise epistemológica, mas o tratamento como se assim o fosse. Trata-se de um movimento para desacreditar as instituições tradicionais que lidam com o conhecimento e assentar em seu lugar blogueiros conservadores ou os digital influencers. Esse expediente foi largamente usado na eleição de Trump, na campanha do Brexit, e no caso brasileiro, a eleição de Bolsonaro.
O último aspecto abordado por Gomes em sua coluna, é sobre a atuação dos difusores desta nova situação. Cita David Roberts, que afirma que essas instituições são "de direita para a direita", e que as categorias de objetividade e de neutralidade não mais fazem sentido. Sobrou apenas o Nós e o Eles, sempre em competição. O critério para a verdade é simplesmente o que é bom para nós e, consequentemente, ruim para eles. Vale o que é bom para a tribo. Isso ocorre porque todas as instituições epistêmicas foram corrompidas pela esquerda. Por esquerda se entende tudo o que, e quem, contraria os seus interesses: os comunistas, os ambientalistas, os globalistas, os gayzistas, as feministas, os marxistas culturais,os ateístas e gente que o valha.
Daí decorre a hostilidade a professores, cientistas, intelectuais, jornalistas, artistas, e, ultimamente, até os "impolutos" juízes do STF, quando esporadicamente contrariam algum de seus muitos interesses. Em suma, um novo conhecimento está em processo de construção, sob a garantia de Olavo de Carvalho, Rush Limbaugh, Steve Bannon, discípulos e assemelhados. A coluna termina com uma leve alfinetada na esquerda: "Que, enfim, há também, e em abundância, epistemologia tribal em movimentos identitários de esquerda".
É. E uma constatação final minha. O momento que estamos vivendo é bem pior do que eu imaginava. É o mundo sob o domínio absoluto da ignorância promovida pelo grande capital, a liquidar qualquer princípio de democracia, cidadania, autonomia, de humanidade e de princípios civilizatórios.
A impressionante experiência da participação no processo eleitoral do Rio Janeiro, como candidata a governadora nas eleições de 2018.
Um adendo (25 de setembro de 2019). "A verdade não é um valor há tempos". TIBURI, Márcia. Delírio do Poder. São Paulo e Rio de Janeiro. Record. 2019.
A impressionante experiência da participação no processo eleitoral do Rio Janeiro, como candidata a governadora nas eleições de 2018.
Um adendo (25 de setembro de 2019). "A verdade não é um valor há tempos". TIBURI, Márcia. Delírio do Poder. São Paulo e Rio de Janeiro. Record. 2019.
Interessante a tua colocação. Por outro lado, ao final o senhor apontou que aqueles que se identificam como esquerda também usaram desse expediente (nós contra eles, no caso eles seriam os conservadores os de direita), em um processo que vem ocorrendo em nosso país a mais de 20 anos (principalmente no meio universitário). De qualquer forma os dois lados cedendo e usando a linguagem do ódio e da trapaça é inaceitavel, se queremos um futuro melhor para nossos filhos e netos temos que quebrar esse círculo maléfico.
ResponderExcluirCom certeza, Rjb. A sectarização não faz bem para ninguém. Agradeço o seu comentário. Realidade estarrecedora.
ResponderExcluirProfessor, se vc com toda vivência e conhecimento histórico, está estarrecido, imagina eu...
ResponderExcluirEncerra um ciclo,inicia outro, mas mesmo que se repita uma desgraça, ela tinha que ser um pouco mais evoluída. Me assusta o ódio "pelo outro"...
Oi Dalva. Existem muitas coisas que estou conseguindo entender apenas agora.Especialmente esta questão do ódio ao outro, do ódio ao diferente. Ele sempre existiu, mas creio que nunca nesta proporção, a não ser em momentos muito específicos. Mas o próprio ódio também é uma longa construção histórica. E quanto a ignorância, sem palavras. Grande abraço.
ResponderExcluirQue análise incrível, né?! Uma realidade que nos deixa fora do lugar. Pedro, há a possibilidade de disponibilizar o texto do Gomes na íntegra? Abraços.
ResponderExcluirAbraão, sou assinante da CULT por um longo tempo e poucos textos me chamaram tanto a atenção. Perdemos os nossos universais. A verdade é tribal. Quanto a íntegra do texto, a revista ainda deve estar nas bancas. Para tirá-la da revista digital, eu não tenho tecnologia suficiente para fazer esta operação. Sinto muito. Agradeço o seu comentário.
ResponderExcluirImportantíssa reflexão. Gostaria de sugerir a leitura de "os engenheiros do caos" que traça um cenário mundial caótico mostrando que nao tem nada aparetemente solto mas há uma arquitetura e ao mesmo tempo apresenta reflexões que nos motiva a superar as agruras contemporâneas.
ResponderExcluirMeu amigo Welber, em primeiro muito obrigado pela sua manifestação. Quanto a sua sugestão, ela é extremamente pertinente e fica como sugestão para os leitores. Pessoalmente já o li e vai aí o link do post. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/05/os-engenheiros-do-caos-giuliano-da.html
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