segunda-feira, 6 de maio de 2019

Nove noites. Bernardo Carvalho. Vestibular UFPR.

São múltiplas as fontes pelas quais chego aos livros que leio. Uma delas é a das indicações para vestibular. Nove noites, de Bernardo Carvalho, é uma das indicações para o vestibular da UFPR. Parece que a UFPR tem um gosto especial por livros mais difíceis, que, como já escrevi em outra oportunidade, não se revelam ao leitor através de uma primeira leitura, ou por uma leitura feita sem a exigência de muita atenção, assim como uma leitura efetivamente deve ser.
Nove noites. O suicídio de um jovem antropólogo norte-americano.

Bernardo Carvalho recorre ao expediente de seu livro ter dois narradores. Um é contemporâneo ao tempo em que o fato narrado ocorreu, isto é, ao ano de 1939. O outro é um jornalista, que em 12 de maio de 2001, lê um artigo de jornal, que relata sobre o fato ocorrido há quase 62 anos. O artigo é assinado por uma antropóloga. O caso referido é o de "Buell Quain, que se suicidou entre os índios Krahô, em agosto de 1939". O artigo faz referência a cartas deixadas por Buell Quain, explicando as razões que o teriam levado ao suicídio. Quain era estudante de antropologia da Universidade de Colúmbia.

A narrativa ganha um facilitador. O narrador contemporâneo aos fatos tem a sua narrativa escrita em itálico. Ele é residente em Carolina, município localizado ao sul do Maranhão, junto ao rio Tocantins, onde havia o posto do Serviço de Proteção ao Índio, e que servia de base para as expedições do antropólogo junto aos Krahô. Foi nestes caminhos, entre a cidade e a aldeia indígena, que ocorreu a trágica mutilação e enforcamento de Quain. O narrador fora amigo de Quain, e com ele passara nove noites, procurando desvendar os mistérios da vida do introspectivo e misterioso antropólogo.

Alguns dados precisam ser observados. Creio que a data de 1939 é o primeiro deles. É um tempo em que os indígenas brasileiros despertam muita atenção do mundo. Buell Quain, inclusive teria se encontrado com o famoso antropólogo Levi Strauss, na cidade de Cuiabá. Pouco depois deste encontro, Quain foi chamado de volta ao Rio de Janeiro, às pressas. Eram os tempos do Estado Novo e do início da Segunda Guerra Mundial. Neste ano, nem os Estados Unidos, nem o Brasil, haviam ainda tomado lado nesta guerra. As desconfianças mútuas eram enormes. As missões evangélicas norte americanas também já estavam presentes entre os povos indígenas. Hoje diríamos que, certamente, eram movidos por motivos humanitários. Faziam também relatórios...

Este primeiro narrador está presente em vários dos 19 capítulos, ou 19 tópicos do livro. As suas intervenções são sempre curtas, de duas a cinco páginas. O foco sempre será o de trazer dados que esclareçam sobre a vida do personagem, o que ele revelou nas conversas e nas cartas deixadas, sempre no intuito maior de deixar pistas sobre o suicídio do jovem antropólogo, de 27 anos. Assim ele relata a notícia do suicídio: "No dia 9 de agosto daquele ano, cinco meses depois de ele ter chegado a Carolina, uma comitiva de vinte índios entrou na cidade no final da tarde. Traziam a triste notícia e, na bagagem, os objetos de uso pessoal do Dr. Buell, que eu mesmo recebi e contei, com lágrimas nos olhos: dois livros de música, uma Bíblia, um par de sapatos, um par de chinelos, três pijamas, seis camisas, duas gravatas, uma capa preta [...] e um envelope com fotografias". E cartas. O segundo narrador irá em busca destas cartas. Quain era um deslocado da vida. Aos 27 anos já percorrera o mundo inteiro, sem se encontrar.

As razões apontadas para o seu suicídio são muitas. As cartas são bastante ilustrativas, mas nunca conclusivas. Entre as hipóteses estão ameças que ele poderia ter recebido dos índios (ele faz questão de isentá-los de qualquer culpa), frustrações com a vida familiar, pois seus pais teriam acabado de se divorciar, uma possível traição de sua esposa, embora nunca se soubesse ao certo se era casado ou não. Um pouco antes de sua tragédia recebera cartas dos Estados Unidos que o deixaram em estado de profunda prostração. Aí entra mais em cena, o segundo narrador, o jornalista investigativo.

Este narrador mistura muitos dados da sua vida pessoal com os fatos investigados. Também ele tem muitos problemas com a sua família, totalmente desestruturada. Os problemas se dão especialmente com o pai, ávido por terras, que conseguia com facilidade, assim como financiamentos generosos, durante o período do regime militar. Tempos de integração nacional, através de grandes projetos. Pelo aspecto familiar, não se sabe ao certo quem teria mais motivos para cometer o suicídio.

O jornalista, diante das muitas dificuldades que encontra para desvendar os mistérios que envolveram o suicídio, sempre fatores essencialmente subjetivos, passa a misturar a realidade com a ficção. E, como ficção, haja imaginação. Esta mistura a deixamos para o leitor, para uma leitura atenta e exigente. O romance foi escrito em 2002. Bernardo de Carvalho teve uma participação na FLIP de 2016, que se tornou bastante polêmica. A polêmica girava em torno da dificuldade da leitura de seus livros. Para facilitar a compreensão da leitura deixo o que está relatado na contracapa do livro, em sua edição de bolso, da CompanhiaDeBolso:

"Vencedor de prêmio de literatura da Biblioteca Nacional e do Portugal Telecom, Nove noites mistura fatos da vida do antropólogo norte-americano Buell Quain - que viveu entre os índios Krahô, no Tocantins, e se matou em 1939, aos 27 anos - com as elucubrações do narrador - que, 62 anos depois, ao conhecer o episódio em um artigo de jornal, passa a pesquisar a vida do americano. A história é dividida em dois tempos - há o relato da vivência de Quain entre os índios, em busca de pistas que expliquem a morte do antropólogo. Por meio da história de Buell Quain, Bernardo Carvalho revela as contradições e os desejos de um homem sozinho numa terra estranha, confrontado com os seus próprios limites e com a alteridade mais absoluta.

O tema, enfim, são os grandes e insondáveis mistérios da vida, tanto os do personagem em questão, quantos os do narrador. Uma forma bem peculiar e própria de escrever um romance.


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