quinta-feira, 30 de maio de 2019

O anjo silencioso. Heinrich Böll. Nobel de literatura 1972.

Lendo Terceiro Reich - Na história e na memória, de Richard J. Evans, me deparo com a indicação do livro de Heinrich Böll, O anjo silencioso, com a anotação de que ele fora um soldado na Segunda Guerra Mundial e que fora agraciado com o Nobel de literatura, no ano de 1972. Me despertou a curiosidade e o adquiri com facilidade. Foi o primeiro de seus livros, mas não publicado por ocasião de sua escrita, em 1950. Foi publicado apenas em 1992, como veremos.
A edição deste livro foi posterior à concessão do Nobel de literatura ao seu autor.

Vamos começar situando o escritor. Ele nasceu em 1917 e morreu em 1985. A católica Colônia era a sua cidade natal. Como vimos, teve participação direta na Segunda Guerra. A narrativa do romance começa no dia 8 de maio de 1945, o dia do término da guerra na sua parte ocidental. Neste exato dia ele retorna para a sua cidade. Dá para imaginar o cenário da guerra? Nada mais era igual ao início do conflito. Tudo era fome, dor e destroços. Destroços físicos e destroços morais. Havia pessoas boas e pessoas que representavam a perpetuação das maldades que provocaram a guerra. Para estes, o espectro de Auschwitz não parecia assustar.

O livro tem seu primeiro momento narrativo forte com a deserção de Hans Schnitzler do exército alemão, já em pândegas. Na hora de sua execução, a sua posição é trocada por iniciativa do sargento Willi Gompertz. Este lhe deixa o seu casaco e, dentro dele, um bilhete dirigido à sua esposa Elizabeth Gompertz. Ele chegará à cidade de Colônia, em busca da viúva, que deixara o hospital em que se encontrava em tratamento. Fornecem-lhe o endereço. Ele a encontra e lhe deixa o bilhete, que tratava da questão da herança deixada deixada.

Hans passa por todas as privações possíveis de serem imaginadas. Por três semanas permanece deitado. Não tem mais identidade, vive de mendicância, de caridade e de furtos. Mas mantém a sua idoneidade moral. Ao ganhar o vale de um pão, explode em felicidade. Ao trocá-lo, o pão acabara e ele tem o seu vale rasgado e o papel se esparrama pelo chão, como em migalhas. A mulher briga com o senhor que destratara o pobre Hans. A mulher era a rica viúva, senhora Gompertz. O homem era o senhor Fischer, conceituado intelectual católico e conselheiro do cardeal e interessadíssimo em receber a herança do sargento Willi. Gente poderosa, mas insensível. Em suas andanças, Hans encontrara Regina, que acabara de perder seu filho. Trocam o que ainda lhes sobrara, afetos de ternura, de carinho de sensibilidade.

Nas andanças, Hans vai aos escombros de uma igreja. Ouve cantos e se comove. Procura o padre. Este o recebe sob a forma da própria humildade e dedicação. Descobre que Hans era antigo paroquiano seu. O acode em suas necessidades do momento e prometem reencontro. Este se deu e Hans pede ao padre para ser ouvido em confissão. O padre o aconselha a casar-se, mas só sob a condição de antes se casarem no civil. Isso é impossível a Hans, simplesmente pela falta de documentos. O padre então corre todos os riscos junto a seus superiores e promete celebrar o casamento. Dá-lhe pão e uma garrafa de vinho. Hans e Regina celebram.

Elizabeth está novamente internada e o seu estado só piora. Dr. Fischer está rondando em busca do bilhete. Elizabeth morre e o doutor fuça pelo chão poeirento e sujo de sangue, em busca do bilhete. Hans chega e diz que a busca seria inútil, para a fúria do doutor, também entretido com a edição de um jornal católico. O doutor Fischer é o personagem usado pelo escritor para mostrar o lado falso da igreja católica, insensível, culpada e co-protagonista dos males do regime que levou o país à guerra. Em contraposição, o humilde padre da igreja em destroços era a generosidade e a bondade da verdadeira igreja católica. Este tema sempre esteve presente nas obras do consagrado escritor. O anjo é uma escultura encontrada em meio aos escombros, que silenciosa assombra Hans.

Na época da conclusão da obra, ela não foi publicada. As dores do momento de reconstrução saíam das chagas ainda vivas. Ela só foi publicada postumamente, em 1992, quando ele já havia sido laureado com o Nobel de literatura em 1972. São outras obras do autor: A honra perdida de Katharina Blum; Bilhar às nove e meia; mulheres em paisagem de rio e fim de uma viagem.

O livro não é longo. A edição da Estação Liberdade tem 202 páginas, que contém 19 pequenos capítulos e um primoroso prefácio do professor Paulo Soethe. A tradução é de Karola Zimber. Deixo ainda a apresentação do livro, das orelhas do mesmo. "O anjo silencioso, primeiro romance de Heinrich Böll, ambientado na Alemanha da "hora zero", o imediato pós-guerra, foi escrito em 1949-51, mas só publicado recentemente, após ter sido liberado pelo espólio do autor. O que nos é apresentado aqui é, de um lado, um país exaurido e arrasado física e moralmente, e, de outro, o supremo alívio pelo fim das hostilidades, o renascer da vida em todos os sentidos.

O livro começa no dia 8 de maio de 1945, dia da capitulação alemã, e nos conduz a um longo mergulho numa cidade alemã da qual não sobra muito mais do que um enorme amontoado de escombros (na verdade, Colônia, cidade natal do autor). Essa paisagem apocalíptica de uma das mais importantes cidades do país inteiramente destruída era algo indigesto demais para o leitor daquela época, e, depois de um ano de idas-e-vindas, a editora acabou desistindo de publicar a obra.

O manuscrito ficou portanto engavetado e representou para Böll material para longa reflexão e humo para uma carreira que seria brilhante, até sua coroação como Prêmio Nobel em 1972. Um dos temas aqui tratados, a dupla moral católica, passaria a ser recorrente em seu trabalho literário, e colocaria Böll numa trincheira de toda vida contra o establishment religioso (e político) alemão.

Para quem vê a Alemanha de hoje, é um tanto árduo imaginar o que pode ter sido a existência no período da "hora zero", e aí reside o interesse da presente obra. Revelação póstuma, a obra fez furor na Alemanha quando de sua tardia publicação. Em texto de forte conteúdo autobiográfico - Böll foi soldado raso durante a guerra e passou pelo trauma de voltar a sua cidade destruída após a liberação do cativeiro pós-guerra -, um soldado um tanto cínico, que desertou com documentos falsificados, volta à cidade natal destruída pelas bombas, em busca de pão, de um teto e de afeto. Ele encontra ternura, mas também a frieza e a engenhosidade dos mais diversos contrabandos, dos interesses escusos, numa estafante busca da viúva de um colega fuzilado. Preservada, no entanto, mantém-se a brasa do amor, emprestando literalmente esperança a seres humanos para quem ela é a mais imediata necessidade".

Para terminar, uma pequena passagem para mostrar o que era a alegria, a felicidade e a esperança que movia a vida neste tempo da "hora zero": "Ela se ergueu cansada, colocou água no fogão, carregou lenha, e, enquanto a água aquecia, contabilizou os seus tesouros: meia garrafa de vinho, metade de um pão, um pouco de geleia, um teco de margarina, uma xícara inteira de pó de café, que ela havia fechado cuidadosamente com papel manteiga, fumo e papel para enrolar cigarros e dinheiro, dinheiro na gaveta, um pequeno monte de cédulas sujas: quase 1.200 marcos e os cinquenta que Hans lhe havia dado; sua riqueza lhe pareceu grande e consoladora". O cigarro parecia ser gênero de primeira necessidade nesses tempos. Ele está onipresente.

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