sexta-feira, 5 de julho de 2019

A República dos bugres. Ruy Tapioca.

Vou começar com uma frase em epígrafe: "Há duas histórias: a história oficial, mentirosa, que se ensina, a história ad usum Delphini; depois a história secreta, onde estão as verdadeiras causas dos acontecimentos, uma história vergonhosa". Honoré de Balzac, As ilusões perdidas, 3, XXXII. Com certeza, o romance histórico - A República dos bugres, de Ruy Tapioca, pertence ao segundo grupo, aos livros de história secreta, "uma história vergonhosa". Encontramos esta epígrafe na abertura da segunda parte.
"É difícil não escrever sátira". Um grande livro. Muitas risadas e muito latim.

Cheguei ao livro através de uma pergunta do meu amigo, o professor Sebastião Donizete Santarosa, se eu conhecia o livro. Ele estava lendo Os tambores de São Luís, de Josué Montello e um outro professor lhe fez esta pergunta, afirmando que os livros tinham similaridades. Confesso que nunca tinha ouvido falar, nem do livro, nem de seu autor. Consultei a Estante Virtual e quando vi que havia apenas quatro volumes à disposição e com uma diferença exorbitante de preço entre o primeiro e os outros volumes, fui à compra. Em conversa com a professora Cláudia Gruber, ela me contou que este livro fez parte de uma disciplina de mestrado, que focava nos romances históricos. Só passo pela vergonha de dizer que não conhecia nem o escritor e nem o livro, pelo fato de ele pertencer aos livros da "história secreta".

Ao final do livro, à página 530 lemos a seguinte nota: Rio de Janeiro, 5 de fevereiro de 1995 a 16 de junho de 1998". É o tempo que o escritor dedicou à pesquisa e à escrita do livro. Na orelha, lemos outra preciosa informação: "o resultado final é uma alentada contribuição às comemorações dos 500 anos do Brasil". Uma informação dada dentro do espírito irônico do livro. Ele foi editado pela Rocco, em 1999. Sua maior premiação foi o Guimarães Rosa, no ano de 1998, antes, portanto, de sua publicação. Uma outra epígrafe, esta na abertura do livro, nos alerta que "É difícil não escrever sátira", retirada de Juvenal, de seu Sátira I, 30.

Este romance histórico, aliás um longo romance, está dividido em dez partes, sem títulos, mas com frases em epígrafes. Estas partes são divididas em trinta capítulos, também sem títulos, mas com tópicos que indicam a localização e a data do ocorrido. A história começa com a chegada da família real portuguesa ao Brasil e termina com a proclamação da República, pelo doente e monarquista marechal Deodoro da Fonseca. Mas não é só este o período retratado. Existem também os apontamentos do bacharel Viegas de Azevedo, que iniciam com o descobrimento e vão até 1755, ano da vinda do bacharel ao Brasil, em virtude do terremoto que castigara a cidade de Lisboa. A partir desta data ele passa a ser testemunha dos fatos, em notas esparsas e genéricas sobre as peculiaridades da formação do povo brasileiro, ou da "República dos bugres".

É difícil fazer a resenha do livro sem reescrever a longa história narrada. Vou fazê-la através de alguns de seus personagens, seguramente os mais marcantes. Vou centralizar tudo no bacharel Viegas de Azevedo e dois personagens de seu entorno, o negro e ex escravo padre Jacinto Venâncio e seu amigo de infância Quincas, um mestre-escola, que não se tornou padre por ter apelidado um padre de "padre perereca", um ato de indisciplina grave. Quincas viera junto com a corte em fuga e era filho bastardo do príncipe regente e depois imperador Dom João VI. O bacharel é o portador da voz mais ferina.

Todos os fatos da história oficial passam a ser reescritos sob o ponto de vista da história não oficial. Vejam como ele nos apresenta D. Pedro, o nosso libertador, na voz do irreverente bacharel: "Quincas: boa bisca não dará esse libertador da pátria dos negros e dos botocudos, tendo na ascendência um avô senil, uma avó louca, um pai corno e uma mãe puta!". Só com isso já dá para perceber que os personagens preferidos nesta sátira são os da família real. Um fato sempre presente no livro é a guerra do Paraguai. Exalta as qualidades de Osório e Caxias e tripudia D. Pedro II e o Conde d'Eu por não terem oferecido armistício ao Paraguai, preferindo o  covarde massacre de feridos, crianças e mulheres. Na guerra encontraremos o padre Jacinto Venâncio, colega de infância de Quincas, o filho bastardo de D. João VI. É um padre negro, um venerável personagem. Os dois encerram o livro com o seguinte diálogo: "Cá habitamos a terra que é a esperança do mundo. Quincas! Viva a República do Brasil! - exclamou o padre, afagando-me o rosto. Pelas alminhas de quem lá tem, padre! Só se for a República dos Bugres". Está aí a referência ao título.

O tema preferido do bacharel Viegas de Azevedo é a formação do povo brasileiro, oriundo de "três matrizes raciais vagabundas". Apresenta o exército brasileiro como um exército de escravos e que a guerra do Paraguai obedeceu a um ditame de branqueamento do povo brasileiro, com a morte de milhares de negros, despreparados para a guerra. O último episódio é o da proclamação da República, onde um marechal, entre a vida e morte, a proclama em meio a vivas ao Imperador. 

Apresento ainda a contracapa do livro: "Romance histórico, em tom picaresco, A República dos bugres revisita a história do Brasil desde a chegada da família real portuguesa até a Proclamação da República, situando o leitor entre o embrião do futuro Estado monárquico e o embrião da presente ordem republicana.

Fatos históricos relativos à Família Real são apresentados com singeleza através das ações de Quincas, o filho bastardo de João VI, assim como fatos relativos à história da escravidão, Guerra do Paraguai e campanha abolicionista são evocados por meio do padre negro e ex escravo. Ademais, personagens célebres povoam as páginas desse romance e, sem nenhuma afetação, o leitor deparará, entre outras, com Dona Maria I e sua loucura; Carlota Joaquina e seus amantes; Dom João VI e suas indecisões; Pedro I e sua impetuosidade; um oportunista Caxias em início de carreira; Machado de Assis, menino e brilhante aluno de latim do mestre-escola Joaquim Manuel (Quincas); até chegar a Pedro II e ao marechal Deodoro da Fonseca. Todo esse vasto panorama, numa apresentação pouco cerimoniosa dos personagens, que leva o leitor a rir com gosto de inúmeras passagens.

Na atmosfera de celebração dos 500 anos, A República dos bugres propõe uma reflexão crítica e, ao mesmo tempo, muito divertida sobre a formação da sociedade brasileira". Um livro imperdível.

Dois adendos: 1. Sobre a importância da educação no Brasil: "Nunca te esqueças que moras no Brasil: a educação para brasileiro tem a mesma importância que mulher tem para eunuco". Página 455. 2, O mestre escola Quincas falando para um aluno que queria ser escritor: "Todavia, reitero-te minhas preocupações, filho: larga dessa ideia maluca de, no futuro, escrever romances, que isso é coisa para franceses, ingleses e russos. Poderias, isso sim, ser um mestre-escola como eu, ou um vigário como o Jacinto Venâncio, por que não?  Não serias abastado, por certo, longe disso! Mas ganharias o suficiente para uma vida minimamente digna. Viver de escrever livros no Brasil é o mesmo que pintar para cegos, ou tocar música para surdos!... Tira essa doidice da cabeça! - aconselhou-o o mestre Quincas". Páginas 352-3. O menino que queria ser escritor era o Machado de Assis.

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