Ao ler Realismo capitalista - é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo?, me lembrei de um outro livro, com o qual praticamente encerrei as minhas atividades docentes no ensino superior, no ano de 2012. Trata-se de O mal ronda a Terra - um tratado sobre as insatisfações do presente, de Tony Judt. O livro foi escrito em 2010, e já no ano seguinte, chegava ao Brasil. Antes de entrar em sua análise, deixo a resenha de Realismo capitalista.
http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/09/realismo-capitalista-mark-fisher.html
Ao reler o livro, me deparei com os agradecimentos. Eles davam o indicativo de que o autor passava por sérias dificuldades em sua vida. Isso me levou a uma consulta ao Google e à própria leitura da orelha da contracapa do livro. Neles constatei que o ano de 2010 (6 de agosto) foi também o ano de sua morte. Ele nascera em 1948. O livro equivale, praticamente, a um testamento seu, a uma despedida. Ele tem um destinatário privilegiado: os jovens. São reflexões que, fundadas no passado, implicam no futuro da humanidade. Diria que o livro é uma forte defesa da Social Democracia, também conhecida como Estado Democrático de Direito, de Estado Previdenciário ou Estado de bem-estar social. Ele vigorou no pós Segunda Guerra, especialmente na Europa Ocidental, entre os anos 1945-1975. Ao final dos anos 1970 e início dos anos 1980 ela foi demonizada pelo neoliberalismo, pela exaltação ao livre mercado, globalizado e absolutamente desregulamentado. Seria ele o causador de o mal que ronda a Terra?
O mal ronda a terra. Tony Judt. Objetiva. 2011.Vou iniciar este post com a orelha da capa, que dá uma ideia curta, porém precisa do teor do livro. É um parágrafo retirado do próprio livro: "Há algo profundamente errado na maneira como vivemos hoje. Ao longo de trinta anos a busca por bens materiais visando o interesse pessoal foi considerado uma virtude [...] Sabemos o preço das coisas, mas não temos ideia de seu valor. Não mais fazemos perguntas sobre uma decisão judicial ou um ato legislativo: é bom? É adequado? É correto? Ajudará a melhorar o mundo ou a sociedade? Essas costumavam ser as questões políticas, mesmo que suas respostas não fossem fáceis. Devemos mais uma vez aprender a fazê-las".
O teor da contracapa vai, mais ou menos, na mesma direção: "Há algo de errado na maneira como vivemos e pensamos o presente. Tony Judt, um dos mais importantes historiadores e pensadores da atualidade, cristaliza com maestria nosso grande desconforto coletivo.
O mal ronda a Terra oferece a linguagem de que precisamos para lidar com as necessidades comuns, rejeitando o individualismo niilista da extrema direita e o socialismo deturpado do passado. O autor argumenta que devemos olhar para nosso passado recente e mais uma vez colocar o respeito à igualdade de direitos acima da mera eficiência. Em vez de ter uma fé cega no mercado - como fizemos nos últimos trinta anos -, temos de confrontar os males sociais e assumir responsabilidades pelo mundo em que vivemos.
Arrebatador, sensato, lúcido, humano e perspicaz, O mal ronda a terra ocupará um lugar de destaque entre os grandes textos políticos de nossa ou de qualquer outra época".
O livro tem uma frase em epígrafe, especialmente apropriada: "O mal ronda a Terra, presa de desgraças crescentes. Onde a riqueza acumula e vivem homens decadentes". Me parece óbvio, que homens decadentes sentem e espalham ao seu redor um profundo mal estar. A frase é de Oliver Goldsmith, em Aldeia abandonada, do ano de 1770.
O livro de Judt, tem seis capítulos, além de introdução e conclusão. Tudo isso está condensado ao longo de 212 páginas. Eu dou os títulos. Introdução: um guia para os perplexos; capítulo um: o modo como vivemos hoje; capítulo dois: o mundo que perdemos; capítulo três: a insuportável leveza da política; capítulo quatro: adeus a tudo isso?; capítulo cinco: o que deve ser feito?; capítulo seis: a história do futuro; conclusão: o que vive e o que morreu na social democracia.
Na introdução, a temática do livro é apresentada. O mal que ronda a Terra, a partir dos anos 1980. O que teria provocado esse mal, ou melhor, esse mal-estar? A resposta é simples. O final dos anos 1970 e início dos anos 1980 marca o abandono dos princípios da social democracia e o início dos tempos do neoliberalismo, com o endeusamento do livre mercado e a demonização de todas as políticas centradas no Estado. Tudo isso marcado pela ascensão dos indivíduos, a diminuição das esferas do coletivo e do público e da acumulação de riquezas e do crescimento das desigualdades. Keynes perdeu o jogo para Hayek e Friedman.
No primeiro capítulo ocorre a descrição desse mundo surgido a partir desses princípios. É o tempo de Thatcher, de Reagan e de Kohl. Logo a seguir de Toni Blair - Gordon Brown - Clinton. As esquerdas capitularam. As desigualdades corroeram as instituições. A desregulamentação mostrou-se amarga e a muitos excluiu dos benefícios do progresso e dos avanços da história. A pobreza foi estigmatizada como a marca de Caim. Uma marca moral que culpabiliza os excluídos. São os próprios culpados pelos seus infortúnios. E uma nostalgia. Houve tempos diferentes. Adam Smith também teve pruridos morais.
No segundo capítulo é mostrada a recuperação do mundo após as catástrofes das guerras e dos regimes totalitários dos períodos entre guerras. Recuperou-se a crença no Estado e nas instituições. Houve forte regulamentação da economia. Esta obedecia a determinações políticas. Criou-se o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Houve até solidariedade na reconstrução do mundo. Nos países desenvolvidos os direitos fundamentais foram universalizados. No horizonte se mirava a prosperidade. Falava-se em planejamento e incentivos fiscais, indutores do desenvolvimento. Tempos de seguridade social. Foram os anos de ouro do bem-estar social. De repente, perdeu-se a fé no sistema. Seus custos eram muito elevados. A acumulação, objetivo maior do capitalismo, não se concretizava.
No terceiro capítulo, mostra-se, que com a relativa prosperidade, perdeu-se o gosto pela participação na política. Outros atores, os austríacos, pensam a política. As esquerdas sofrem os baques do socialismo real, já na década de 1950 (1956) e 1960 (1968). Cultua-se o mercado, as privatizações e a eficiência da racionalidade instrumental e concorrencial. Sacraliza-se a ideologia da meritocracia, culpabiliza-se a pobreza. Os vínculos sociais não cabem mais na economia. No mercado há ganhadores e perdedores. O mal ronda a Terra.
No quarto capítulo, a grande questão é apresentada: Dizemos adeus a tudo isso? Uma nova realidade político econômica é apresentada a partir dos fatos de 1989 e 1991, com a Queda do Muro de Berlim e da dissolução da URSS. Não há alternativas. A história chegou ao fim de seu percurso. Se não há alternativas, sobra apenas a rendição. Duas (agora já três) décadas já se passaram e os mesmos princípios continuam dominantes. Nem mesmo a crise de 2008 (o maior socorro público a bancos - grandes demais para quebrarem) estremeceu os princípios do livre e desregulamentado mercado. O "não há alternativas" comprometeu o imaginário das esquerdas. O imaginário sobreviverá?
Se ao final do quarto capítulo já há indicativos para a necessidade de alternativas, estas passam a ser o cerne do quinto capítulo. Uma frase de Keynes abre a perspectiva de que o conformismo com a realidade tem um preço a pagar: "Em vez de usar seus recursos técnicos e materiais ampliados para erguer uma cidade admirável, os homens do século XIX construíram cortiços... que 'passaram' no teste do lucro da iniciativa privada, enquanto que uma cidade admirável seria, pensavam, um ato de delirante extravagância que acabaria por 'hipotecar nosso futuro', no imbecil jargão em voga... A mesma regra autodestrutiva de cálculo econômico governa todos os setores da vida. Destruímos a beleza do campo porque os esplendores da natureza não apropriados carecem de valor econômico. Seríamos capazes de apagar o sol e as estrelas, pois eles não pagam dividendos". Afinal, fazer o bem não foi sempre um desejo humano? É preciso imaginar alternativas.
O sexto capítulo nos mostra mais um pouco do real existente e a perspectiva diante do futuro. O que já temos? Terroristas, o medo de imigrantes em massa, o desemprego, a criminalidade. O que já paira no horizonte? Mudanças climáticas, generalização de guerras regionalizadas... No entanto, a fé nos mercados continua inabalável. "Com Clinton e Blair, o mundo atlântico estagnou de forma presunçosa".
E, o parágrafo final, já da conclusão: "Ao escrever este livro tentei oferecer alguma orientação aos que - especialmente jovens - buscam articular suas objeções a nosso modo de vida. Contudo, isso não é o bastante. Como cidadãos de uma sociedade livre, temos o dever de analisar criticamente nosso mundo. Mas, se acreditamos saber o que está errado, devemos agir a partir desse conhecimento. Os filósofos, como notoriamente já observado, até agora apenas interpretaram o mundo de várias maneiras; a questão é mudá-lo".
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