"Desta maneira, leitor amável, contei-te história fiel das minhas viagens durante dezesseis anos e mais de sete meses, na qual me preocupou menos o ornamento que a verdade. Eu te poderia, talvez, como outros, haver maravilhado com estranhas e improváveis narrativas; mas preferi relatar singelamente os fatos, da maneira e com o estilo mais fáceis, porque o meu intuito principal era informar-te, e não te divertir". Assim inicia o capítulo final do livro Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift.
Viagens de Gulliver. Jonathan Swift. Abril. 1971.
Confesso que antes da leitura do livro, li a pequena biografia do autor, que acompanha a coleção dos Imortais da Literatura Universal. Também confesso que a sua biografia me tirou um pouco a vontade da leitura de seu livro, ou melhor, da boa vontade de sua leitura. Uma vida cheia de complicações e de indefinições. Muitas mudanças de lado. Swift nasceu na Irlanda, no ano de 1667 e morreu, também na Irlanda, em 1745. Não obstante, ele se considerava mais inglês do que irlandês. Importante observar as datas para, a partir delas, lançar um olhar sobre a política inglesa do período. Tempos de colonialismo e de lutas entre católicos e protestantes, entre os whigs e os tories. Swift pertenceu a ambos, conforme os ventos lhe soprassem favoráveis. Mas, vamos a obra, da qual já apresentei um ponto de vista, a partir do autor.
Primeiramente tomo do livro de biografias as anotações referentes à obra: "Possivelmente ninguém mais adoecia em Londres. Ou então as doenças eram tão fulminantes, que nem havia tempo de recorrer-se ao médico. De qualquer modo, um dia o consultório do Dr. Lenuel Gulliver se viu entregue às moscas. Diante das dificuldades financeiras, o médico embarcou no primeiro navio disponível, como cirurgião de bordo. Mas o navio, mal se pôs ao largo, naufragou. Após muito nadar, Gulliver foi ter a um prado macio e solitário, em cuja relva verde adormeceu. Ao despertar, não pode mover-se: estava atado ao chão por finos cordéis e guardado por minúsculas figuras humanas. Chegara ao país Lilipute.
Homem inteligente, não tardou a aprender a língua da terra e conquistar a confiança de seus habitantes. Em pouco tempo era amado por muitos e invejado por alguns, que pacientemente tramavam intrigas para afastá-lo. O rei acabou ouvindo-as e Gulliver teve de abandonar seus pequenos amigos e retornar a Inglaterra. Afinal, os dois países eram bem parecidos; talvez só se distinguissem pela língua e pelo porte dos habitantes. As lutas entre facções opostas eram as mesmas. A miséria, as revoltas, a morte não poupavam Lilipute nem a Inglaterra, e o tamanho das pessoas não contava, diante do mal.
A aventura não atemorizou Gulliver; tão logo pode, encetou uma segunda viagem, que acidentalmente o levou a Brobdingnag, o país dos gigantes, onde se tornou, primeiro, brinquedo nas mãos de uma menina descomunal; depois bobo da corte. Tentou esclarecer o soberano sobre as leis e instituições inglesas, mas os ensinamentos só serviram para enfurecer o monarca, que julgava os ingleses uma praga a assolar a humanidade.
As dimensões exageradas - das pessoas, das feridas, das imundícies, dos insetos - transformavam Brobdingnag num lugar repugnante. Humilhado e nauseado, Gulliver aguardava com ansiedade o momento de escapar. Uma águia gigante se compadeceu dele e lhe possibilitou a fuga para a ilha de Laputa. Ali os sábios passavam a vida teorizando, sem vínculos com a realidade cotidiana. Conheciam lógica e harmonia, mas viviam na mais completa desorganização. Gulliver não suportou sua convivência e buscou a companhia dos Struldbrugs, a casta maldita da ilha. Eram imortais, porém a perenidade da vida não lhes assegurava a juventude ou a saúde eternas. Arrastavam-se como farrapos de gente, sem dignidade, Gulliver tampouco pode ficar com eles e regressou a Inglaterra.
A sede de aventuras chamava-o para uma nova viagem. Um motim a bordo levou-o por acaso ao país dos Houyhnhnms, onde os cavalos governavam com sabedoria e os homens se submetiam. Essa foi a única civilização merecedora de elogios dentre as várias com as quais deparava o herói. Os contemporâneos de Swift não puderam perdoar-lhe a inversão de valores: animais dotados de virtudes que deveriam ser humanas e homens reduzidos à bestialidade dos macacos. Com a recordação do país dos Houyhnhnms, Lenuel Gulliver abre relato de suas aventuras, publicadas pela primeira vez em 1726, por Benjamin Motte e reeditadas no ano seguinte".
O que quis Swift com as suas viagens? "Pelo fantástico de certas situações - na verdade um artifício do autor para atacar mais livremente as instituições inglesas -, pelo dinamismo das aventuras, pela simplicidade do estilo, pela simpatia que o herói transmite, Viagens de Gulliver tornou-se, ao longo do tempo, livro predileto do público infantil". E mais..."Além de desmascarar a humanidade e demolir os falsos valores - seu objetivo primacial -, Swift visava ainda a ridicularizar a moda da narrativa de viagem, uma obsessão da época. O burguês bem sucedido, tranquilamente instalado nas cidades, ansiava por relatos heroicos, aventuras fascinantes que preenchessem o vazio de sua vida".
O livro está, portanto, dividido em quatro partes. Mas antes de apresentá-las, vamos ao título completo do livro: Viagens - em diversos países do mundo em quatro partes. Por - Lemuel Gulliver - a princípio cirurgião e, depois, capitão de vários navios. Vamos às partes: Parte I. Viagem a Lilipute (8 capítulos). Parte II. Viagem a Brobdingnag (8 capítulos). Parte III. Viagem a Laputa, Balnibardi, Luggnagg e ao Japão (11 capítulos). Parte IV. Viagem ao país dos Houyhnhnms (12 capítulos). O livro conta com 276 páginas, de letra bem miudinha. Cada capítulo é antecedido de uma pequena síntese do capítulo, o que facilita a leitura.
Selecionei alguns trechos, a título de ilustração: 1. Parte II. capítulo VI, Página 121 O rei lhe fala: "Meu amiguinho Gildrig, fizestes o mais admirável panegírico do vosso país; provastes à sociedade que a ignorância, a ociosidade e o vício são os ingredientes adequados à qualificação de um legislador; que as leis são melhor explicadas, interpretadas e aplicadas por aqueles cujo interesse e habilidade consistem em as perverter, confundir e iludir. Observo entre vós alguns traços de uma instituição que poderia ter sido, originariamente, tolerável, mas cuja metade está quase apagada, ao passo que o resto foi inteiramente obliterado e borrado pela corrupção. Não transparece, em quanto dissestes, que se exija uma única perfeição para que alguém atinja uma posição qualquer entre vós; e muito menos que os homens sejam enobrecidos em razão da sua virtude; que os sacerdotes sejam promovidos pela piedade ou pelo saber; os soldados, pelo procedimento ou pelo valor; os juízes pela integridade; os senadores, pelo amor à pátria; os conselheiros pela sabedoria".
2. Parte III, capítulo VI, Página 175. Sobre as mulheres: "Propôs-se que as mulheres pagassem impostos de acordo com a beleza e a habilidade no trajar, no que teriam os mesmos privilégios concedidos aos homens de lhes ser confiado ao próprio alvedrio o total das contribuições. Mas a constância, a castidade, o bom senso e a bondade não seriam taxados por não compensarem as despesas de arrecadação". Opa, isto é daquele tempo!
3. Parte IV, capítulo IV, Página 228. Sobre o motivos das viagens: "Redargui que eram indivíduos de desesperada fortuna, obrigados a fugir dos sítios em que haviam nascido à conta de sua pobreza ou dos seus crimes. Alguns tinham sido arruinados por pleitos; outros haviam gasto quanto possuíam bebendo e jogando; outros tinham fugido por traição; muitos por assassínio, furto, envenenamento, roubo, perjúrio, estelionato, cunhagem de moedas falsas. rapto ou sodomia; por haverem desamparado a sua bandeira, ou desertado para o inimigo; e a maioria deles escapara à prisão; nenhum se atrevia a voltar ao seu país de origem temendo ser enforcado ou morrer à míngua num calabouço, e, destarte, era-lhes necessário prover à própria subsistência em outros lugares". Só pessoas de bem.
4. Parte IV, capítulo V, Página 232. Sobre os motivos das guerras: "Às vezes, a briga entre dois príncipes é para decidir qual deles desposará um terceiro dos seus domínios, aos quais nenhum tem direito algum; às vezes, um príncipe briga com outro porque tem medo que o outro brigue com ele; às vezes inicia-se uma guerra porque o inimigo é demasiado forte; outras, porque é demasiado fraco; às vezes, os nossos vizinhos querem as coisas que queremos, e ambos lutamos até que eles nos tomem as nossas, ou nos deem as suas. É causa muito justificável de guerra invadirmos um país depois que foi o seu povo arrasado pela fome, ou destruído pela peste, ou enfraquecido por dissensões intestinas". Sempre presente a ironia. Uma pequena amostragem.
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