Em meus já longos anos de estudos sempre busquei os fundamentos. Os fundamentos dominantes em nossa cultura. Nela estão assentados os princípios que norteiam a vida e afirmam os valores que dão sentido e significado à existência. São eles que nos conduzem a uma harmonização de vidas ou então o seu contrário. São eles que fundamentam o comportamento humano, contidos nos princípios morais e éticos da convivência humana. Para encontrá-los, nada melhor do que ler e estudar os clássicos.
Iliada. Homero.Nesse sentido, estou numa releitura de clássicos: Ilíada, Odisseia e Eneida. Uma observação de Marcos Reis Pinheiro, contida no prefácio da Odisseia, da Editora Nova Fronteira, me chamou particular atenção. Ela diz assim: "Homero criou a Grécia histórica, tendo sido então de influência tão profunda e duradoura como a Bíblia, Dante e Shakespeare em fases subsequentes da cultura ocidental. O verso 208 do Canto VI da Ilíada, na fala de Glauco, resume o ideal grego da educação individualista, do agon, na luta, em que o preceptor desperta no aluno o espírito de competição levada ao extremo, educando-o.
para ser sempre o primeiro e de todos os mais distinguir-me".
Já a definição de Agon, segundo a Wikipédia nos diz que era "era um daemon (espírito orientador) que personificava os concursos, desafios e disputas solenes nos jogos olímpicos, nas peças teatrais e também nos debates e discussões filosóficas". Quem teve a felicidade de conhecer a cidade de Olímpia teve a oportunidade de conhecer esse espírito. Lutar ao lado de vencedores, muitas vezes elevados à condição de semideuses. Portanto, um direcionamento do imaginário, tão presente nos cursos motivacionais de nossos tempos. Seja sempre o primeiro e nada te impede que você o seja!. O problema, na modernidade, são as tais das condições materiais.
A minha grande referência para os estudos da educação grega sempre foi o livro Paideia, a formação do homem grego, do alemão Werner Jaeger. Já no primeiro capítulo, lugar dos gregos na história da educação, depois de falar desses fundamentos da civilização grega, ele faz a sua aplicação aos princípios educacionais. Vejamos uma parte dessa apresentação: "Colocar esses conhecimentos como força formativa a serviço da educação e formar por meio deles verdadeiros homens, como o oleiro modela a sua argila e o escultor as suas pedras, é uma ideia ousada e criadora que só podia amadurecer no espírito daquele povo de artista e pensador. A mais alta obra de arte que seu anelo se propôs foi a criação do Homem vivo. Os gregos viram pela primeira vez que a educação tem de ser também um processo de construção consciente. 'Construído de modo correto e sem falha, nas mãos, nos pés e no espírito', tais são as palavras pelas quais um poeta grego dos tempos de Maratona e Salamina descreve a essência da virtude humana mais difícil de adquirir. Só a este tipo de educação se pode aplicar a palavra formação, tal como a usou Platão pela primeira vez em sentido metafórico, aplicando-a à ação educadora".(Página 13). O alemão chama a isso de Bildung e a diferencia de Erziehung, a educação escolar formal.
Jaeger, já antes, fala da inspiração grega na formação do mundo moderno e lhe aponta estas características de formação individual: "O mundo grego não é só o espelho onde se reflete o mundo moderno na sua dimensão cultural e histórica ou um símbolo da sua autoconsciência racional. O mistério e deslumbramento originário cerca a primeira criação de seduções e estímulos em eterna renovação". Um pouco mais adiante ele reafirma e reforça esse princípio: "Dissemos que a importância universal dos gregos como educadores deriva da sua nova concepção do lugar do indivíduo na sociedade. E, com efeito, se contemplamos o povo grego sobre o fundo histórico do antigo Oriente, a diferença é tão profunda que os Gregos parecem fundir-se numa unidade com o mundo europeu dos tempos modernos. E isto chega ao ponto de podermos sem dificuldade interpretá-los na linha da liberdade do individualismo moderno" (Página 9).
Paideia. A formação do homem grego. Werner Jaeger. Martins Fontes.A educação está umbilicalmente ligada à palavra caminho, meios, processos. Isto é, a promoção da inserção do indivíduo na sociedade. Inserção do indivíduo na sociedade. Ela é dinâmica e está em constante processo de transformação. O mesmo ocorre com as estruturas da sociedade. E é esta a razão de sua complexidade e de suas polêmicas. Outras palavras entram na análise. O coletivo, o comum, o conviver, modelos de sociedade. Hoje ela é um renhido campo de disputas. Isso a leva a controles, que chegam ao grau de insensatez. Seus objetivos muitas vezes são reduzidos a treinamentos utilitários, as avaliações são massivamente padronizadas e a atuação docente é limitada ao uso de plataformas, eliminando a práxis do trabalho docente. E onde fica a formação do indivíduo?
Tenho recomendações a fazer, de dois grandes educadores brasileiros. De Dermeval Saviani Escola e democracia e de Paulo Freire, Educação como Prática da Liberdade, Pedagogia do Oprimido e Pedagogia da autonomia - saberes necessário à prática pedagógica. Entre esses dois autores, compreendo as diferenças, mas neles vejo mais aproximações do que distanciamentos. Uma educação voltada para a formação da consciência, consciência de classe.
Também tenho comigo um texto do memorável Milton Santos. Um texto do qual eu não desgrudo. Os deficientes cívicos, publicado na Folha de S.Paulo de 19 de janeiro de 1999. Eu o considero como um testamento seu, que ele nos legou. Ele nos fala da redução da educação nos tempos da globalização, termo pelo qual, na época, era denominado o neoliberalismo. Ele afirma e reafirma que a educação, entendida como formação, como Bildung, nunca pode dissociar-se da formação filosófica e da formação profissional. Nunca o pêndulo pode pender mais fortemente, apenas para um dos lados sob a pena de formar deficientes cívicos. A sua tese principal é a de formar indivíduos fortes e cidadãos íntegros.
Este texto é um texto para blog, chamativo para o debate. Isso implica em limites de todos os tamanhos. Mas com certeza, serve para a reflexão e o debate, com algumas linhas necessariamente presentes, sempre quando se debate a educação. Pena que hoje se debata tão pouco e se imponha tanto. Tempo de governos neoliberais. Tempos em que o neoliberalismo deixou de ser mera doutrina econômica para ser uma visão de mundo, que enxerga tudo sob uma ótica de unidimensionalidade. A ótica da mercadoria, do lucro e da acumulação. O ser humano é plural e complexo, fruto da relacionalidade e da riqueza da pluralidade, das trocas. Jamais um pensamento uniforme, padronizado e imposto.
Que a educação tenha sempre a perspectiva da expansão e não da contenção. Termino com uma frase em que é definida a criança, no seu sentido mais pleno. Ela se encontra no livro A resistência, de Ernesto Sábato. Diz assim: "Toda a criança é um artista que canta, dança, pinta, conta histórias e constrói castelos". É tarefa da educação ajudar a expandir este artista e, pela Bildung, formar um ser humano "construído de modo correto e sem falha nas mãos, nos pés (mundo trabalho) e no espírito (o mundo da filosofia, da política, da cidadania). Ajudar a criança na inserção no mundo e não na adaptação ao mundo. Hoje, creio também, que em função do hiperindividualismo, a palavra emulação é melhor do que a palavra competição.
Deixo o texto do Milton Santos. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2015/03/os-deficientes-civicos-milton-santos.html e também um texto sobre a fundação do pensamento humanista, contido na Ilíada.
http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/01/iliada-homero-uma-definicao-do-humano.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado pelo comentário. Depois de moderado ele será liberado.