Ilíada é uma obra que retrata a cultura grega, atribuída a Homero e que, junto com a Teogonia (Hesíodo) e a Odisseia (também de Homero), é peça fundante da literatura e da cultura universal. Ela é uma compilação da tradição oral, datada do século IX ou VIII a. C.. Ela retrata o último ano da Guerra de Troia, ocorrida no século XII a. C.. Alguns até lhe fixam os dez anos de duração com os anos de 1194 a 1184 a. C.. Homens valorosos, super-homens e deuses se envolveram nessa guerra, motivada por elementos profundamente humanos. Ela envolveu as cidade gregas contra a poderosa Troia, situada na Ásia Menor. Ambas as cidades tiveram os seus heróis. Os heróis troianos foram exaltados mil anos após, por Virgílio em Eneida, dedicada a Eneias. Uma exaltação ao fundador de Roma e do Império Romano.
Ilíada. Homero. Nova Fronteira.
Bem, a finalidade deste post é mostrar a presença do humano, os valores que o constituem e exaltados por Homero, especialmente, ao final da obra. Vamos, por isso retomar esta parte da obra, para nos fixarmos no canto XXIV, o canto final. Ele trata do resgate do cadáver de Heitor, para lhe oferecer as devidas honras fúnebres. Na Eneida encontramos uma descrição precisa sobre a importância do funeral nessas culturas fundantes. Sibila, a guia de Eneias no mundo das sombras, assim fala ao herói troiano: "Toda essa multidão aqui é constituída de pobres que ficaram sem sepultura. Não lhes será permitido atravessar o rio antes que seus restos repousem nas tumbas ou seus corpos sejam cremados nas piras. Se tal não acontecer, aqui ficarão vagando cem anos e até duas vezes cem anos, antes que deles se condoa o triste Caronte".
Afirmada esta importância, voltamos à Ilíada. O troiano Heitor é morto por Aquiles, que assim vinga a morte de seu grande amigo Pátroclo, morto por Heitor. Aquiles, tomado de ódio, não se satisfaz apenas com a morte de seu inimigo. Também lhe profana o corpo, mantendo-o insepulto. Príamo, o rei de Troia e pai de Heitor, procura meios, grandes e simbólicas riquezas, para resgatar o filho junto a Aquiles, e lhe prestar as honras funerais. É nesse momento que os ódios que envolvem os personagens são superados pelos valores. Cenas comovedoras são apresentadas. Demos atenção a elas: Príamo fala a Aquiles:
"Sem pelos outros ser visto, entra o grande monarca, e de Aquiles // aproximando-se, abraça-lhe os joelhos e beija as terríveis // mãos homicidas, que muitos dos filhos lhe haviam matado.
Como se dá quando algum criminoso exilado da pátria // busca, vencido da angústia, refúgio em mansão opulenta // de potentado estrangeiro, deixando os presentes atônitos: // do mesmo modo o terrível Pélida se assombra ao ver Príamo.
Todos os mais se entreolharam, tomados de pasmo como ele. // Súplice, Príamo, então, começou de falar, e lhe disse: // "lembra-te, Aquiles, igual a um dos deuses, teu pai venerável é // da mesma idade que a minha e, portanto, como eu, assim velho. //É bem possível que esteja cercado por fortes vizinhos, // cheio de angústia, sem ter quem lhes sirva de amparo e defesa; // mas, só de ouvir que estás vivo, alegria indizível lhe invade // o coração, dia a dia esperando poder ante os olhos ter a figura do filho glorioso, de volta de Troia.
Muito mais triste é o meu fado, que, após tantos filhos ter tido, // de comprovado valor, nem um só na velhice me resta. // Vivos, cinquenta floriam no tempo em que os Dânaos chegaram; // da mesma mãe, dezenove guerreiros me foram brindados; // os outros todos diversas mulheres nos paços tiveram. // De muitos dele as forças dos joelhos tirou Ares forte; // e o único herói que restava, dos muros amparo e de todos, // a combater pela pátria, não há muito tempo mataste, // o meu Heitor, cujo corpo aqui venho insistente pedir-te, // às naus aquivas trazendo resgate de preço infinito.
Sê reverente aos eternos, Aquiles; de mim tem piedade; // pensa em teu pai, também velho, bem mais infeliz sou do que ele, // pois chego agora a fazer o que nunca mortal fez na terra: // beijo-te as mãos, estas mãos que a meus filhos a Morte levaram".
Grande saudade do pai no Pelida o discurso desperta; // toma das mãos do monarca, afastando-o de si com brandura. //Ambos choravam; o velho, lembrando de Heitor valoroso, // num soluçar convulsivo, de Aquiles aos pés enrolado, // que, ora o pai velho chorava, ora a perda do amigo dileto, // Pátroclo; o choro dos dois pela tenda bem-feita ressoava.
Logo que Aquiles divino saciado ficou de gemidos // e os membros todos e o peito sentiu libertados da angústia, //do belo trono se ergueu, pela mão toma o velho monarca, // de branca barba condoído, condoído da nívea cabeça, // e, começando a falar, lhe dirige as palavras aladas:
"Quanta amargura, infeliz, não suportas ao peito sofrido! // Como pudeste vir só aos navios dos fortes Aquivos // e apresentar-te entre os olhos de quem foi a causa da perda // de tantos filhos valentes? Tens férreas entranhas, decerto. // Vamos, assenta-te agora no trono; apesar de angustiados, // é conveniente deixar as tristezas no peito se aplaquem.
Nada o homem lucra em deixar-se invadir pelo gélido pranto. // Sempre viver em tristeza, eis a sorte que os deuses eternos // de descuidada existência aos mortais infelizes dotaram. // Sobre os umbrais do palácio de Zeus dois tonéis se acham postos, // de suas dádivas; um só de males; de bens outro cheio. // Se, misturando-as, Zeus grande, senhor dos trovões, as derrama, // quem as recebe ora goza, ora males por sorte lhe tocam; // mas o que dele recolhe somente infortúnios, escárnio // vivo se torna; em extrema miséria, na terra divina, // é condenado a vagar, desprezado por homens e deuses. //
Ao nascimento, também, de Peleu os eternos lhe deram // dons inefáveis; riquezas sem conta, dos homens a estima, // e o incontestado governo dos fortes guerreiros Mirmídones. // Mais: apesar de mortal, como esposa uma deusa lhe cedem. // Grande infortúnio, porém, concederam-lhe os deuses, negando-lhe // filhos que o mando pudessem herdar-lhe no belo palácio; // a mim somente gerou, destinado a morrer muito cedo. // Longe a pátria, não posso cercar de cuidados o velho, // pois me acho em Troia, causando-te, e aos filhos, desditas sem conta.
Tu, também, velho, já foste feliz, pelo que me contaram. // Quantos guerreiro existem de Lesbo, na sede de Mácar, // té para o norte da Frígia, nos lindes do vasto Helesponto, // já dominaste, abençoado com filhos e bens infindáveis. // Mas, desde o instante em que os deuses celestes tal praga te enviaram, // guerra, somente, e homicídios em torno dos muros te soam.
Vamos, suporta! Não deves à dor excruciante entregar-te. // Nada consegues chorando teu filho com tantos encômios; // não ressuscita, e, além disso, outro mal poderias causar-te" (Versos 476-549).
Vamos retomar a fala de Aquiles, quando fala dos dois tonéis. O que não está dito? Vamos dar voz a Carlos Alberto Nunes, responsável pela introdução, apresentada à editora Nova Fronteira. A mesma também pode ser encontrada na edição da Melhoramentos:
"Na resposta de Aquiles é que vamos encontrar a muito famosa e para sempre célebre imagem dos dois tonéis do limiar no Olimpo, de males e de bens, as dádivas de Zeus. Se, ao nascimento, alguém recebe uma mistura desses dons, atravessa, de acordo, a existência: ora a sofrer, ora com fases de relativa felicidade. Mas, se recebe apenas males, torna-se desprezado por todos e ludíbrio permanente dos homens e dos deuses. É de notar que Aquiles não menciona a terceira possibilidade: de receber algum mortal, ao nascimento, apenas dádivas do tonel de bens, pois a condição humana é incompatível com essa disposição".
Eis revelada a condição humana. Os dois reis, valorosos guerreiros, viveram momentos profundamente humanos, valores humanos, que se impuseram ao desumano das guerras. Literatura e cultura fundante.
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