quarta-feira, 27 de agosto de 2025

O TIRANO. Valério Mássimo Manfredi.

A vez continua sendo a dos livros não lidos, encontrados em minha biblioteca. Desta vez a escolha recaiu sobre um livro maravilhoso e, pelas atuais circunstâncias históricas, extremamente atual. Trata-se de O Tirano, do professor italiano Valério Mássimo Manfredi. O cenário do livro é a fantástica ilha italiana da Sicília, ou a Trinácria, o seu nome original do tempo dos gregos. A cidade é a de Siracusa e o Tirano é Dionísio. Muita história para contar. Vamos a primeira dica, a da contracapa: 

O Tirano. Valério Massimo Manfredi. Rocco. 2005. Tradução: Mário Fondelli.

"Sicília, 412 a.C., começa o duelo infinito entre um homem e uma superpotência. O homem é Dionísio de Siracusa. A superpotência é Cartago, dona dos mares e megalópole mercantil. Com pouco mais de vinte anos, Dionísio, nas fileiras do exército siracusano, é forçado a testemunhar o pavoroso massacre de Selinunte devido às indecisões do governo democrático. A indignação e a raiva alimentam nele três férreas convicções. As democracias são ineficientes. Os cartagineses são os inimigos mortais do helenismo e precisam ser escorraçadas da Sicília. O único homem capaz de levar a cabo tal façanha é ele próprio".

O livro se estende por 31 capítulos, ao longo de 330 páginas. Mas antes um pouco de história. Observemos a data acima citada: 412 a.C.. A hegemonia grega já estava consolidada, após a sua vitória nas guerras médicas, as guerras contra os persas. Atenas era a mais importante das cidades, mas viu o seu poder ser contestado por outras cidades, fato que ocasionou as chamadas guerras do Peloponeso,  que terminaram com a vitória de Esparta e depois de Tebas. Em Atenas dominava a democracia. Na filosofia, o grande fato foi o julgamento e a condenação à morte de Sócrates, no ano de 399 a.C. e a ascendência de Platão, que inclusive tem os seus incidentes em Siracusa, como veremos. No teatro ainda se vivia o grande momento da tragédia.

Na Sicília havia várias cidades sob a influência da cultura grega, embora o fenômeno do helenismo propriamente dito, viria apenas lá adiante, junto com as conquistas de Alexandre Magno. A cidade dominante da cultura grega, que inclusive vivia o fenômeno da democracia, era Siracusa, mas também se destacava Agrigento, com o seu famoso Vale dos Templos. Já a disputa pelo domínio da Sicília, ou seja, a grande rival de Siracusa, era a cidade de Cartago (hoje nas proximidades de Túnis, a capital da Tunísia), a dona dos mares e do comércio marítimo. Dominavam a parte norte da ilha. As guerras eram constantes. Terminado um conflito, já se preparavam para novos e mais graves conflitos. Dionísio não se conformava com a situação. Culpava a democracia reinante na cidade, especialmente a lentidão na tomada de decisões, em momentos que exigiam agilidade extrema. Muitas vezes, quando as decisões eram tomadas, os fatos já tinham se sobreposto ao problema. Outra indignidade sua era relativa à acomodação dos dirigentes políticos. Estavam muito mais preocupados com a manutenção de seus postos do que com os efetivos problemas da população. 

Dionísio, com o tempo toma conta da situação. Quando ele chega ao poder, os cartagineses já haviam dominado as cidades de Solinunte  e Imera e, já sob o seu comando, ele próprio acumula derrotas na poderosa Agrigento e em Gela e Kamárina. Essas narrativas já incorporam o coração do livro. Outras partes são dedicadas ao comportamento do tirano. Monocrático e implacável. Não ouve ninguém. Celebra as mais espúrias alianças, inclusive com os povos bárbaros, atacando as próprias cidades helênicas. Afasta-se de seus ajudantes mais próximos, inclusive Filisto, o sábio mais próximo e de Leptines, o irmão. O estreito de Messina, altamente estratégico, também será palco de lutas. Para isso busca o domínio da cidade de Regio, na Calábria.

Em momentos de paz, ele é bom governante. Expande a cultura grega e se torna, tanto poderoso por suas qualidades, quanto temido por seu autoritarismo. Também tem interesse pela cultura, especialmente pelo teatro, mas detesta os filósofos. Creio ser este o momento de falar de sua relação com Platão. O episódio tem a seguinte narrativa:

" - Esqueci de mencionar a coisa mais engraçada - disse. - O negócio de Platão.

- Platão? repetiu Filisto arregalando os olhos. - Estamos falando do grande filósofo?

- Ele mesmo. Estava viajando pela Itália nesta primavera e parou na Sicília, e aí em Siracusa. Recebeu muitos convites, como era de se esperar, nos círculos mais prestigiosos da cidade, e acredito até de alguma negociação da Companhia. Foi logo dizendo que o nosso luxo era deplorável: o hábito de comer três vezes por dia, de dormir com a mulher todas as noites, de morar em casas suntuosas demais. Ao mesmo tempo, numa conversa posterior começou a tratar dos vícios e da depravação das instituições num regime de tirania, especificando mesmo que no caso de não ser possível extirpar o mal, um caminho alternativo seria o de entregar aos filósofos a tarefa de educar o sucessor do próprio tirano, no intuito de fazer dele um estadista digno. Deu para entender? Estava praticamente se oferecendo como educador do jovem Dionísio". O relato continua com a afirmação de que os dois não chegaram a se encontrar e que o tirano mandou que ele fosse devolvido à Grécia, não sem antes recomendar que ele fosse vendido aos piratas. O relato termina desta forma:

"Por Heraclés! - Filisto exclamou pasmo. - Aos piratas?

Isto mesmo. Os discípulos tiveram de resgatá-lo num mercado de Egina, antes de o homem acabar não se sabe onde.

Filisto não pode evitar um sorriso ao lembrar um rompante de Dionísio: 'Os filósofos! Evito-os como a sujeira dos cães na rua" (Páginas 297-8). Como o visto, o ódio das ditaduras à filosofia vem de longe, ou, desde sempre.

A Companhia, a que a citação se refere é outra questão interessante. Dionísio era um de seus membros. Ela sempre intervinha em momentos decisivos. Em nota do autor, ao final do livro, Manfredi a relaciona com a origem da Máfia. É... Sicília, Calábria...

Ao final, o autor tece considerações acerca da democracia e da ditadura, pendendo para o lado da democracia. O argumento principal é o da sucessão. "Muito simples: não haverá um segundo Dionísio Tudo baseia-se nele, assim como o céu apoia-se nos ombros de Atlas. O melhor dos tiranos não pode ser preferível à pior das democracias. Ele não é substituível, e o dia que cair, a sua construção, por mais poderosa que seja, cairá com ele. É só uma questão de tempo" (Página 307). A educação do sucessor enseja uma bela discussão da educação sob os princípios do autoritarismo. Um bom tema para discutir num momento em que a ultra direita brasileira joga todas forças em cima de uma educação dita 'cívico militar'. 

Uma série de mapas ocupa as páginas finais do Livro. Há muito tempo eu ouvia a afirmação de que se você efetivamente quer conhecer a Grécia, em sua parte de arquitetura, visite a Sicília. Eu pude constatar isso. Em 2012, no mês de julho eu me afastei definitivamente da sala de aula. Me dei um presente. Trinta dias pela Grécia e Itália. Uma semana na Sicília. Visitamos Taormina - Siracusa - Noto - Agrigento - Érice - Trápani - Monreale e Palermo. Terminamos numa viagem de Cruzeiro de Palermo a Nápoles. Deixo o post que fiz sobre a cidade de Agrigento e o seu fabuloso vale dos Templos. No mesmo post, tem também Siracusa. Um mergulho fantástico na cultura clássica. Desejo a todos essa oportunidade única.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2012/10/diario-de-uma-viagem-siracusa-noto-e.html


terça-feira, 19 de agosto de 2025

ESPELHO CEGO. Robert Menasse.

Quando eu estava disposto a deixar a sala de aula em definitivo, quase que semanalmente eu visitava as livrarias. Estava de olho nas promoções. Comprava diferentes tipos de livros e nem sempre os motivos da compra estavam claros para mim. Um dos critérios pelos quais eu comprava era o da editora. Livros da Companhia das Letras eu sempre comprava. A Companhia era para mim, e ainda continua sendo, uma espécie de garantia de um bom livro. Sempre uma referência.

Espelho cego. Robert Menasse. Companhia das Letras. 2000. Tradução: George Bernard Sperber.

Um desses livros que comprei foi - Espelho cego. O autor, Robert Menasse, é um austríaco, com passagem pela Universidade de São Paulo, na qualidade de professor visitante, entre os anos de 1981 e 1986. Essa passagem lhe deu a ambientação para a escrita desse romance extremamente complexo. O autor nasceu em Viena, no ano de 1954. A edição alemã do livro data de 1991 e a brasileira, do ano de 2000. Hoje, o autor vive em Viena. os cenários do romance são as cidades de Viena e de São Paulo.

Os protagonistas do romance são o casal, Leo Singer e Judith Katz. Obsessões amorosas e filosóficas unem o casal. São de origem judaica, judeus austríacos. Ele nasceu em São Paulo e ela em Porto Alegre mas, ainda pequena, também viria a morar em São Paulo. Os pais se refugiaram no Brasil, fugindo das perseguições nazistas aos judeus na Europa. Os pais, embora bem sucedidos no Brasil, ao fim das perseguições, retornam à pátria de origem. Os acontecimentos maiores do romance, primeiramente ocorrem em Viena, onde as obsessões dos jovens efetivamente começam. Em São Paulo eles haviam conhecido um senhor de sobrenome Löwinger, que se tornará uma espécie de protetor de Leo. A grande obsessão de Leo era a de transformar o mundo, de forma definitiva. Hegel era o mote.

Para situar o romance, vamos à contracapa do livro. "Perdido no labirinto de espelhos da reflexão filosófica, Leo Singer, aspirante a filósofo, sai em busca da vida essencial como herói de uma epopeia inusitada, cujos caminhos não são mais aqueles bem-aventurados, iluminados pelas estrelas do mapa original do firmamento da filosofia. Os acasos deste périplo iniciado em Viena o conduzirão ao Brasil pós-golpe de 1964. As contradições de uma realidade mergulhada em plena ditadura somam-se às da trajetória do herói, gerando episódios hilariantes, como o de ver-se subitamente promovido a renomado especialista na filosofia de Hegel capaz de prever o futuro por força de um monumental equívoco, gerado na sumária apresentação da Fenomenologia do espírito - obra capital do filósofo alemão - à imprensa nativa. Entretanto, buscando a expressão contemporânea do descompasso entre o indivíduo e o mundo, a narrativa ultrapassa os contornos da novela quixotesca que lhe serve de paradigma, fazendo irromper a tragédia em meio à farsa, o humor corrosivo em meio à graça do ridículo".

Em Viena, Leo tinha todo o tempo à disposição para a escrita de sua obra. Estava livre de preocupações financeiras, por uma mesada, dada pelos pais, mas com a devida mesura. A mãe o controlava, fato ao qual ele reagia, devotando-lhe um enorme ódio. A escrita estava travada. Suas leituras e fichamentos eram os temas das conversas intermináveis, que, inclusive, travavam as relações amorosas. Essa era a sua vida em Viena. Hoje nós o qualificaríamos como um chato.

A grande mudança vem com a morte do pai. A mãe o manda para São Paulo para cuidar das heranças lá deixadas. Inúmeros terrenos, muito valorizados com a especulação imobiliária. Tarefa para advogados, lhe dizia Löwinger, a quem ele reencontrara. Tinha, portanto, à disposição todo o tempo necessário para concluir o seu tratado filosófico. Mas nada conseguia escrever. A história mais uma vez se altera, quando Judith, que ele considerava morta, de repente lhe aparece à porta. Aí é que escrita travou de vez.

O romance é longo e, haja imaginação! Por incrível que pareça, ele é escrito num estalo só. São 379 páginas, sem divisão em capítulos e poucos diálogos curtos. Muitas reflexões inconclusas. Já quase ao final, refletindo sobre "as aporias da existência de um intelectual" ele abandona tudo. "Leo tinha abdicado de sua pretensão de escrever a continuação da obra de Hegel. Bastava-lhe a cátedra no bar (lá o aclamavam como professor), a qual lhe dava pelo menos a sensação de ter cumprido de alguma forma com essa pretensão" (Páginas 334-5).

Bem antes, porém, um fato ocorrido no dia 2 de outubro de 1968, o impediu de ser alçado para a consagração como um grande filósofo, o maior intérprete de Hegel no Brasil. Ele havia sido convidado para uma palestra na Universidade Mackenzie. Foi o dia da briga da Rua Maria Antônia, entre os estudantes da USP e o Comando de Caça aos Comunistas da Mackenzie. Maldita ditadura militar!

Creio que a essas alturas todos já imaginam que o romance só poderia terminar em tragédia. Vou apresentar apenas uma delas.  Leo consegue terminar o seu livro. Judith tinha anotado tudo. Havia feito uma memorável síntese, que Leo apenas editou. Mas, o resultado...! "... E foi então que apareceu o livro de Leo. A fenomenologia da desespiritualização. História do desaparecimento do saber. Semanas cheias de tensão se passaram, durante as quais não foi publicada nenhuma resenha. Finalmente Leo redigiu um artigo, no qual chamava a atenção para o conteúdo e a importância do livrinho, e o publicou na revista Leia livros, como opinião de redação, claro que teve que pagar por isso. Deixou alguns exemplares dessa edição da revista no bar.

No fim do ano, recebeu a primeira prestação de contas da editora. Tinham sido vendidos cinco exemplares. As bibliotecas das universidades de São Paulo e de Porto Alegra tinham comprado um exemplar cada. Só três exemplares haviam sido vendidos nas livrarias.

Quatro meses depois Leo ficou sabendo que sua editora tinha falido" (Página 378, a penúltima página).

O espelho ou o Espelho cego, do título está onipresente ao longo do livro. Reflexos, simulações, jogos, espelhos quebrados. O título em alemão: Selige Zeiten, brüchige Welt. As observações sobre a ditadura militar são fantásticas, um fato a mais para tornar o livro muito valioso. 

 

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

O Gattopardo. Tomasi di Lampedusa.

"Tenho porém que confessar: quando ali em Aspremonte me vi diante daquela centena de descamisados, alguns com cara de fanáticos incuráveis, outros com jeito de revoltosos profissionais, fiquei feliz que as ordens coincidissem com aquilo que eu mesmo pensava: se não tivesse mandado atirar, aquela gente teria feito picadinho dos meus soldados e de mim, e o desastre não seria grande, mas acabaria provocando a intervenção francesa e a austríaca, uma confusão sem precedentes em que desabaria este Reino da Itália que se formou por milagre, não se sabe como" (Página 274). A fala é de Pallavicino, militar que participara da batalha.

O Gattopardo. Tomasi di Lampedusa. BestBolso. Tradução: Marina Colassanti.

Essa passagem do livro indica o seu tema principal, as lutas em torno da unificação italiana. Aspremonte foi uma das batalhas em que Garibaldi, vindo da Sicília, no rumo de Roma, venceu as tropas do reino italiano. Como este é o tema principal vamos a uma pequena contextualização em torno dessa unificação, iniciada no ano de 1860. Um tema bem complexo. Vejamos a situação anterior ao movimento.

O atual território italiano era fragmentado em diversas cidades estado (reinos, principados, repúblicas) onde predominava fortemente uma economia agrícola e não havia um sentimento de unidade nacional. A fragmentação resultava em fragilidade, que despertava a cobiça das potências já estabelecidas como a Áustria e a França. Os reis borbônios, que tanto aparecem no romance, é uma alusão aos reis Bourbons. Um desses estados tomará a dianteira: o reino do Piemonte-Sardenha. A capital do Piemonte é a cidade de Turim. Ali também está em marcha uma processo de industrialização. Alguns nomes ligados ao processo: o rei Vitório Emanuel II, Mazzini, o intelectual e ideólogo do movimento, e pelo grande chefe militar, Garibaldi, fundamental nas lutas na Sicília e em todo o sul. Garibaldi, o aclamado herói de dois mundos, é velho conhecido dos brasileiros por sua participação na Revolução Farroupilha (1835-1845) Em 1861 será proclamada a monarquia constitucional da Itália, sendo Vitorio Emanuel II o rei e Cavour o seu primeiro ministro. Creio que estes dados são suficientes para se ter a devida compreensão do romance.

Creio que podemos afirmar, sem erro, que as lutas em torno da unificação italiana são, ou constituem o que se pode chamar de - a revolução burguesa na Itália. A partir desse dado vamos aos grandes personagens, aos protagonistas de O Gattopardo. Em primeiríssimo plano aparece Dom Fabrício Salina, o nobre todo poderoso de Palermo, na Sicília. Pertence, portanto, à nobreza decadente. Do outro lado, pela burguesia emergente, está a família Calogero Sedara. Muita atenção aos personagens mais próximos: Tancredi, o sobrinho de Dom Fabrício e Angélica, a bela filha de Dom Calogero. Os personagens coadjuvantes serão os ligados à família Salina, mulher, filhos e em especial as três filhas, com destaque para Concetta, o padre Pirroni, um jesuíta e, não dá para esquecer de Bendicò, o onipresente cachorro da nobre família.

Creio que o enunciar dos personagens já dá uma pista fabulosa em torno da trama, mas vou dar mais uma. "Se nós não estivermos presentes, eles aprontam a República. Se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude. Fui claro"? (Página 69). Assim proclama Dom Fabrício. E um pouco mais adiante ele pergunta: "E então, o que vai acontecer? Negociações pontuadas por tiroteios quase inócuos, e depois tudo continuará igual quando tudo terá mudado" (Página 73).

Como assim? Mudar para não mudar? Em outras palavras, depois da unificação consolidada, tudo continuará igual. Para isso, basta apenas usar muita astúcia. O casamento será o grande instrumento. Fabrício entrará com o noivo, Tancredi, enquanto que a bela Angélica representará a aliança com a burguesia. A permanência do estado de coisas estará garantida. Os casamentos, o seu fazer e desfazer, não foram sempre marcados pela utilidade? Coitada de Concetta!

O romance é de autoria de Giuseppe Tomasi di Lampedusa (Palermo, 1896 - Roma, 1957) e o seu livro aparece no ano de 1958. Veio acompanhado de muita polêmica. O livro está dividido em oito partes, com os temas bem marcados. Não é muito longo. A edição da BestBolso, que eu li, tem 348 páginas, com muitas notas de introdução e posfácio. Os acontecimentos dos capítulos são datados, o que facilita bastante.

"Nunc et in hora mortis nostrae. Amen. Assim começa a primeira parte (Maio-1860). Um capítulo maravilhoso sobre os costumes da Sicília, a fantástica Trinácria do tempo dos gregos. O final da oração da Ave Maria nos indica a força do catolicismo na ilha. Dos costumes deve-se ressaltar o patriarcalismo e o poder absoluto e incontestável de Dom Fabrício. Na segunda parte (Agosto-1860), a família vai passar férias na vila de Donnafugata, a resplandecente propriedade dos Salina. Na terceira parte (Outubro-1860) a questão italiana nos é apresentada. Os resultados do plebiscito, com o fabuloso resultado de 512 sim contra 0 não, embora sob protestos de que alguns votos no não, tenham sido transformados em sim. Também veremos Tancredi se decidindo por Angélica, em detrimento de Concetta, sob fortes protestos de sua mãe.

A quarta parte (Novembro-1860) se constitui num extraordinário capítulo em que é relatado o acordo nupcial, costurado por Dom Fabrício. Este também recebe a visita de um agente do Piemonte, junto com um convite para o senado, que ele gentilmente recusa, para "não enganar a si próprio". Ao menos é isso que ele afirma. A quinta parte (Fevereiro-1861) é dedicada ao padre Pirroni. Na sexta parte (Novembro-1862) é mostrado um baile, em que brilham Tancredi e Angélica, enquanto Fabrício e o coronel Pallavicini confabulam longamente. E um parágrafo notável sobre os resultados da unificação, nas palavras do coronel: "O Senhor não esteve no continente depois da fundação do reino? Sorte sua. Não é um belo espetáculo. Nunca estivemos tão divididos como desde que estamos unidos. Turim não quer deixar de ser capital, Milão acha nossa administração inferior à austríaca, Florença teme que lhe levem as obras de arte, Nápoles chora pelas indústrias que perde, e aqui, na Sicília, está em gestação algum grande, irracional desastre..." (Página 276).

A sétima parte (Julho-1883) é dedicada ao fim, à morte de Fabrício, sem antes passar por suas mais ricas reminiscências. Morte com assistência de padre, confissão, comunhão e encomendação. A oitava e última parte (Maio- 1910) também é fantástica. É dedicada às três filhas Salina, nos seus setenta anos. Referência especial a Concetta e as mágoas de uma vida inteira. Psicanálise pura. Fanatismos religiosos e correções por parte das autoridades eclesiásticas. Apenas cinco das 74 relíquias que acumularam foram reconhecidas.

O Gattopardo é uma referência a Dom Fabrício e ele está no brasão da família Tomasi. Mas há no livro uma passagem notável referente ao Gattopardo: "...e depois será diferente, porém pior. Nós fomos os Gattopardos e os leões; os que vão nos substituir serão pequenos chacais, hienas; e todos, Gattopardos, chacais e ovelhas continuaremos a crer que somos o sal da terra" (Página 224-5).

Quando se conclui o processo da unificação italiana? Nos conta a história, que isso ocorreu com a conquista de Roma, em 1870. Mas eu diria que ela ainda está em curso. Em 2012 viajei pela Itália por quase um mês. Uma semana foi dedicada a fabulosa Sicília. Num dos trechos, tivemos um guia basco. Um primor no seu ácido humor. Nos contava ele que a Itália ainda estava longe de ser um país unificado. O sul brigava com o norte e o norte brigava com o sul. E, tanto o norte quanto o sul, brigavam com Roma. O Gattopardo é um livro imperdível. Absolutamente ímpar. Mudar para não mudar.