sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

OS INTELECTUAIS NA IDADE MÉDIA. Jacques Le Goff.

Que livro maravilhoso. Um dos intelectuais mais brilhantes de nossos tempos, ou mais precisamente, dos tempos recentes. Estou falando de Jacques Le Goff (1924-2014) e de seu maravilhoso livro Os intelectuais e a idade Média. É sabido que Le Goff é um dos maiores especialistas neste tema. É um livro fundamental para conhecer as transformações que mais tarde desembocariam na chamada modernidade. Ao contrário do que se imaginava e se propagava, a Idade Média não era a época de trevas, mas uma época em ebulição. Tudo fervilhava. Era água nova, teimando em brotar. Lembrando que a história considera como Idade Média, o tempo entre os anos de 476 e 1453. As datas marcam a Queda do Império Romano e a Tomada de Constantinopla, respectivamente. Período entre os séculos V e XV.

Os Intelectuais e a idade Média. Jacques Le Goff. José Olympio. 2003. Tradução: Marcos de Castro.

O livro aborda o surgimento dos intelectuais, algo que tem a ver com as universidades. Estas, por sua vez, surgem junto ao movimento de urbanização e das consequências ligadas a este fenômeno. O conhecimento sai dos mosteiros e faz das cidades o seu novo habitat. Mas ele continua sob o controle da Igreja, dividindo-o com o Estado, este também um fenômeno emergente, ao menos na tomada de suas novas formas. É um fenômeno dos séculos XII e XIII, e como lemos, já no prefácio do próprio autor, ele tinha por objetivo maior o controle do poder. Das universidades sairiam os funcionários mais graduados, as mais altas hierarquias dessas instituições. Bolonha, Paris e Oxford são os grandes centros ligados a essas universidades.

Le Goff também nos indica os pensadores mais influentes desse período. Como se trata de um período de transformações, estas também atingem os campos do conhecimento. Um mundo de certezas passa por questionamentos. A fé revelada passa a ser cada vez mais questionada e a questão da fé versus razão atinge novos patamares de questionamentos. Platão e Santo Agostinho passam a ser confrontados com Aristóteles, que chega às universidades pela retomada dos estudos e da tradução direta dos pensadores da Grécia clássica e também pela via dos árabes que chegam a Europa. O período marca sobretudo uma volta ao esplendor da cultura greco-romana. Os intelectuais viviam perigosamente, sempre beirando às heresias. Entre os pensadores, entre outros, encontramos os nomes de Pedro Abelardo (1079-1142), Roger Bacon (1214-1294), Santo Tomás de Aquino (1227-1274 e Guilherme de Ockham (1288-1348). As faculdades mais tradicionais eram cinco: Artes,  Medicina, Direito Civil, Direito Canônico e Teologia. A ciência permeava todas elas. O estudo da natureza povoava cada vez o imaginário dos intelectuais, especialmente, à medida em que o tempo passava. No século XV o intelectual medieval entra em declínio. Este século XV também é o limite do estudo de Le Goff neste livro.

Vamos à estrutura do livro. Ele tem um belo prefácio do próprio autor, uma pequena introdução e o corpo do trabalho, formado por três capítulos. Termina com algo meio inédito, um ensaio bibliográfico, sublinhando os livros mais importantes que abordam o período, um índice remissivo e preciosas referências cronológicas, obviamente relativas ao período trabalhado. Vamos então aos três capítulos do corpo do trabalho: I. O século XII. Nascimento dos intelectuais. II. O século XIII. A maturidade e seus problemas. III. Do universitário ao humanista.

Vejamos os temas abordados nos capítulos: I. O século XII. Nascimento dos intelectuais: Renascimento urbano e nascimento do intelectual no século XII; Antigos e modernos; A contribuição greco-árabe; Os tradutores; Paris: Babilônia ou Jerusalém?; Os goliardos (maravilhoso); A vagabundagem intelectual; O imoralismo; a crítica da sociedade; Abelardo; Heloísa; a mulher e o casamento no século XII; Novos combates; São Bernardo e Abelardo; O lógico; O moralista; O humanista; Chartres e o espírito chartriano; O naturalismo chartriano; O humanismo chartriano (Percebam a importância de Chartres como centro intelectual); O homem microcosmo; A usina e o homo faber; Figuras; Brilho; o trabalhador intelectual e o canteiro urbano; Pesquisa e ensino; As ferramentas.

II. O século XIII. A maturidade e seus problemas: Perfil do século XIII; Contra os poderes eclesiásticos; Contra os poderes leigos; Apoio e embargo do papado; Contradições internas da corporação universitária; Organização da corporação universitária; Organização dos estudos; programas; Exames; Clima moral e religioso; A piedade universitária; O equipamento; O livro como instrumento; O método: a escolástica; Vocabulário; Dialética; Autoridade; Razão: a teologia como ciência; Os exercícios: quaestio, disputatio. quodlibet; Contradições - Como viver? Salário ou benefício?; A querela dos regulares e dos seculares; Contradições da escolástica: os perigos da imitação dos antigos; As tentações do naturalismo; o difícil equilíbrio da fé e da razão: o aristotelismo e o averroísmo; As relações entre a razão e a experiência; As relações entre a teoria e a prática (É como uma visita à universidade para conhecer a sua estrutura e funcionamento). 

III. Do universitário ao humanista. O declínio da Idade Média; A evolução das vicissitudes dos universitários; Rumo a uma aristocracia hereditária; Os colégios e a aristocratização das universidades; Evolução da escolástica; Divórcio entre a razão e a fé; Limites da ciência experimental; O antiintelectualismo; A nacionalização das universidades: a nova geografia universitária (Uma bela mostra da expansão das universidades); Os universitários e a política; A primeira universidade nacional: Praga; Paris: grandezas e fraquezas da política universitária; A esclerose da escolástica; Os universitários se abrem ao humanismo; A volta à poesia e à mística; Em torno de Aristóteles: a volta à linguagem bonita; O humanista aristocrata; A volta ao campo; A ruptura entre a ciência e o ensino.

As orelhas do livro são ocupadas pela historiadora Mary Del Priore. Na orelha, além de apresentar um retrato da obra, apresenta também um perfil do autor. Ela ocupa também a contracapa: "Capítulo fundamental da história medieval, este livro feito de limpidez, sutilezas e erudição apresenta ao leitor um autor fundamental, íntimo dos arquivos, hábil em criticar os documentos, ágil em interpretar seus silêncios, enérgico em revelar suas contradições. Passando com maestria da longa duração aos fatos pontuais, do material ao espiritual, Jacques Le Goff explica a história dos intelectuais medievais. Mas ele também confirma seu papel e seu lugar dentre os maiores intelectuais de nosso tempo".

O livro me lembrou muito das aulas de história. Humanismo e Renascimento. Agora visto em profundidade e com rara e cativante beleza que te prende à leitura. Simplesmente um livro imperdível e maravilhoso. Esta já foi uma releitura.