A morte e a morte de Quincas berro dágua é o título de um dos livros de Jorge Amado. Na orelha do livro se lê o seguinte: "A morte e a morte de Quincas berro dágua se destaca como uma pequena obra-prima de concisão narrativa e poética, tida por muitos como uma das mais extraordinárias novelas de nossa língua". O que tem de estranho neste pequeno livro do Jorge Amado? Terminei de ler, recentemente, do mesmo autor, Tieta do Agreste. São 646 páginas e agora tomo em mãos o Quincas e ele tem apenas 109, sendo 15 delas de posfácio e cronologia. E ainda por cima o tamanho das letras é enorme. O que eu quero, afinal de contas dizer, é que o Quincas é um livrinho, se o considerarmos pelo seu tamanho.
Outra coisa que imediatamente chama a atenção é a repetição do nome do sujeito que morreu, o tal do Quincas. Seriam duas pessoas diferentes que morreram, ou seriam diferentes apenas as versões sobre a sua morte? É exatamente em cima disso que está construída a história. Outro aspecto interessante é o sobrenome deste Quincas. Obviamente que o berro dágua não é sobrenome, mas é algo mais do que um qualificativo da pessoa. O melhor a fazer é partir imediatamente para a sua leitura e tentar entender. Ao final do livro existe um posfácio bastante ilustrativo, mas creio ser melhor deixá-lo para o final mesmo. A autoria é de Afonso Romano de Sant'Ana.
Outra coisa que eu vi, é que o pequeno livro é chamado de novela. Não é, portanto, nem romance e nem um conto. Curioso, fui ver as diferenças. Tenho ainda o velho hábito de consultar dicionários. O Aurélio me acompanha. Vejamos. Romance: descrição longa das ações e sentimentos de personagens fictícios, numa transposição da vida para um plano artístico. Novela: Narração usualmente curta, ordenada e completa, de fatos humanos fictícios, mas, por via de regra, verossímeis. Conto: Narrativa pouco extensa, concisa, e que contém unidade dramática, concentrando-se a ação num único ponto de interesse. Creio que posso dizer que a novela é maior que o conto e menor que o romance.
O Quincas e o Quincas são duas pessoas diferentes, mas também o são, uma única pessoa. O episódio narrado é o de sua morte e, mais precisamente ainda, o do seu velório. E é neste detalhe que está focada a novela. O Quincas tem dois velórios diferentes. Acima de tudo a história é muito divertida. Jorge a colheu em muito lugares e, certamente, um grande escritor é também um bom observador e acima de tudo um bom ouvinte. Zélia Gattai ajuda a contextualizar a obra. Ela foi escrita em 1959, a pedidos, para o lançamento da revista Senhor. O pedido lhe fora feito pelo amigo de Jorge, o pintor Carlos Scliar. Zélia nos dá algumas dicas do personagem: "Fui me apaixonando pela figura maravilhosa do vagabundo de tantas mortes". Me chamou atenção o fato de ele ser considerado um vagabundo. Também com este qualificativo de berro dágua, não dava para esperar coisa diferente. Afonso Romano de Sant'Ana, nos dá outras dicas fabulosas, mas o melhor é recorrer às primeiras páginas da novela, ou menos ainda, bastam as primeiras páginas para você ter uma noção do personagem. Jorge costuma ser assim. Ele entrega a história já nas primeiras páginas.
Afonso Romano de Sant'Ana fala de realidade e ficção e estabelece relação com obras similares de outros autores. Mas como já falei, pelas primeiras frases do livro, você tem uma ideia do duplo Quincas, ou dos dois Quincas, se é que eles existiram. Vejamos Jorge: "Até hoje permanece certa confusão em torno da morte de Quincas Berro Dágua. Dúvidas por explicar, detalhes absurdos, contradições no depoimento das testemunhas, lacunas diversas. Não há clareza sobre hora, local e frase derradeira. A família, apoiada por vizinhos e conhecidos, mantém-se intransigente na versão da tranquila morte matinal, sem testemunhas, sem aparato, sem frase, acontecida quase vinte horas antes daquela propalada e comentada morte na agonia da noite, quando a lua se desfez sobre o mar e aconteceram mistérios na orla do cais da Bahia".
Capa da primeira edição do livro. Anteriormente saiu no lançamento da revista Senhor, em 1959 e em 1961 foi publicado em livro - Os velhos marinheiros, junto com o Capitão-de-longo-curso.
Parece que o cenário está montado. Existem duas versões sobre a morte de Quincas. Uma da família e a outra, que partiu das orlas do cais do porto. Mas vamos em busca de mais alguns detalhes. As duas versões são dadas por pessoas com uma visão de mundo muito diferente. O narrador mostra a versão da família de Quincas e a do próprio, esta supostamente, da seguinte forma: "Assim é o mundo, povoado de céticos e negativistas, amarrados, como bois na canga, à ordem e à lei, aos procedimentos habituais, ao papel selado. Exibem eles, vitoriosamente, o atestado de óbito assinado pelo médico quase ao meio dia e com esse simples papel - tentam apagar as horas intensamente vividas por Quincas Berro Dágua até sua partida, por livre e espontânea vontade, como declarou, alto e bom som, aos amigos e outras pessoas presentes".
Também existem duas versões sobre quem é Quincas. Como a família o vê e como esta mesma família vê os donos da outra versão. Vejamos a versão dos familiares sobre Quincas: "A família do morto - sua respeitável filha e seu formalizado genro, funcionário público de promissora carreira; tia maroca e seu irmão mais moço, comerciante com modesto crédito num banco". E agora a visão da família de Quincas sobre os da outra versão: "afirma não passar toda a história de grossa intrujice, invenção de bêbedos inveterados, patifes à margem da lei e da sociedade, velhacos cuja paisagem devera ser as grades da cadeia e não a liberdade das ruas, o porto da Bahia, as praias de areia branca, a noite imensa".
Já deu para perceber que existe forte animosidade entre as versões. E parece que o narrador, se não tomou partido, tem enorme simpatia por uma das versões. A riqueza da novela está na apresentação dos personagens e de suas falas, que compõem estes mundos, um mundo real e um mundo de simulações. A história é muito engraçada e toda ela perpassada pelo humor ácido de Jorge, mas Zélia nos deixa uma advertência: "Se a história é leve e engraçada, eu cá tenho as minhas dúvidas".
Afonso Romano de Sant'Ana fala de realidade e ficção e estabelece relação com obras similares de outros autores. Mas como já falei, pelas primeiras frases do livro, você tem uma ideia do duplo Quincas, ou dos dois Quincas, se é que eles existiram. Vejamos Jorge: "Até hoje permanece certa confusão em torno da morte de Quincas Berro Dágua. Dúvidas por explicar, detalhes absurdos, contradições no depoimento das testemunhas, lacunas diversas. Não há clareza sobre hora, local e frase derradeira. A família, apoiada por vizinhos e conhecidos, mantém-se intransigente na versão da tranquila morte matinal, sem testemunhas, sem aparato, sem frase, acontecida quase vinte horas antes daquela propalada e comentada morte na agonia da noite, quando a lua se desfez sobre o mar e aconteceram mistérios na orla do cais da Bahia".
Capa da primeira edição do livro. Anteriormente saiu no lançamento da revista Senhor, em 1959 e em 1961 foi publicado em livro - Os velhos marinheiros, junto com o Capitão-de-longo-curso.
Parece que o cenário está montado. Existem duas versões sobre a morte de Quincas. Uma da família e a outra, que partiu das orlas do cais do porto. Mas vamos em busca de mais alguns detalhes. As duas versões são dadas por pessoas com uma visão de mundo muito diferente. O narrador mostra a versão da família de Quincas e a do próprio, esta supostamente, da seguinte forma: "Assim é o mundo, povoado de céticos e negativistas, amarrados, como bois na canga, à ordem e à lei, aos procedimentos habituais, ao papel selado. Exibem eles, vitoriosamente, o atestado de óbito assinado pelo médico quase ao meio dia e com esse simples papel - tentam apagar as horas intensamente vividas por Quincas Berro Dágua até sua partida, por livre e espontânea vontade, como declarou, alto e bom som, aos amigos e outras pessoas presentes".
Também existem duas versões sobre quem é Quincas. Como a família o vê e como esta mesma família vê os donos da outra versão. Vejamos a versão dos familiares sobre Quincas: "A família do morto - sua respeitável filha e seu formalizado genro, funcionário público de promissora carreira; tia maroca e seu irmão mais moço, comerciante com modesto crédito num banco". E agora a visão da família de Quincas sobre os da outra versão: "afirma não passar toda a história de grossa intrujice, invenção de bêbedos inveterados, patifes à margem da lei e da sociedade, velhacos cuja paisagem devera ser as grades da cadeia e não a liberdade das ruas, o porto da Bahia, as praias de areia branca, a noite imensa".
Já deu para perceber que existe forte animosidade entre as versões. E parece que o narrador, se não tomou partido, tem enorme simpatia por uma das versões. A riqueza da novela está na apresentação dos personagens e de suas falas, que compõem estes mundos, um mundo real e um mundo de simulações. A história é muito engraçada e toda ela perpassada pelo humor ácido de Jorge, mas Zélia nos deixa uma advertência: "Se a história é leve e engraçada, eu cá tenho as minhas dúvidas".
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