segunda-feira, 24 de agosto de 2015

A Máquina da Lama. Roberto Saviano.

A minha aproximação com Roberto Saviano se deu através da FLIP, a grande feira literária de Paraty, na sua edição de 2015. Ele era o convidado especial do evento, mas não pode comparecer por questões de segurança, ou melhor, por absoluta falta de condições de segurança. O escritor é jurado de morte pela máfia italiana, principalmente a de Nápoles, que ele descreveu minuciosamente em seu livro Gomorra - A história real de um jornalista infiltrado na violenta máfia napolitana. A edição italiana é de 2006 e a primeira edição brasileira é de 2008. No Brasil o livro já está na nona edição.
O livro de Saviano que o tornou famoso e jurado de morte.

 Ao tomar conhecimento de seu não comparecimento me decidi por encontrá-lo. Comprei três livros seus: Gomorra, A Máquina da Lama e Zero Zero Zero. Iniciei a leitura com Gomorra, uma narrativa muito vigorosa do mundo do crime que toma conta da economia mundial, mas o considerei muito detalhista para nós brasileiros, que não acompanhamos o dia a dia dos noticiários italianos. A minha segunda leitura foi para A Máquina da Lama - Histórias da Itália de hoje. Uma surpresa mais do que agradável. O livro relata a incursão do autor na televisão italiana, através de uma programa com o título de Vieni via con me (Vem embora comigo), uma série de programas apresentados na TV estatal italiana. A primeira edição italiana é de 2011 e a brasileira de 2012.
A Máquina da lama. As incursões de Saviano na televisão italiana.

A máquina da lama é  simplesmente a televisão italiana. O tema me interessou sobremaneira. Vejamos uma parte da apresentação, escrita por Maurício Stycer, na orelha do livro: "Em matéria de mau gosto e baixaria, a televisão italiana não é muito diferente da brasileira. O que a distingue é o modelo de exploração, já que ela é ancorada numa estrutura pública, formada por três canais, loteados entre diferentes forças políticas, inclusive da oposição. A despeito de suas muitas imperfeições, esse modelo sempre garantiu alguma diversidade. Com Berlusconi no poder, no entanto, acumulando o controle das três principais redes privadas de tevê e também com ingerência sobre as públicas, a diversidade praticamente virou pó. Uma a uma, as vozes independentes da RAI foram colocadas de lado, viram seus projetos serem engavetados ou deixaram a emissora".

Foi o caso de Roberto Saviano. Vem embora comigo foi projetado para contar histórias da Itália de hoje, como lemos no subtítulo do livro. Nem todos os programas contavam histórias da máfia. A série foi um sucesso de público, com audiência superior a de jogos de futebol e a do Grande Fratello, o Big Brother italiano. Pelo enorme sucesso, os programas da série teriam que acabar. Saviano afirma que eles não eram destinados a um público, mas para cidadãos italianos.
A força jovem de Roberto Saviano.

O livro está dividido em duas partes. A primeira Vieni via con me, descreve os programas feitos para a televisão e a segunda, Camorra, são três artigos escritos para o jornal La Repubblica. Porém, o prefácio à edição brasileira merece um destaque todo especial e ocupa nada mais, nada menos, que vinte páginas. Começa citando Jorge Amado, o seu livro Navegação de cabotagem e fala da relação entre Brasil e Itália que vai para muito além do futebol. Fala sobre as peculiaridades da censura italiana na televisão, sobre a sua experiência nela como um penetra, e se entusiasma com a descrição de seus programas, em que diz ter apresentado uma Itália que sonha e na qual nem todos são iguais, como a televisão tradicional tenta fazer ver. Diz ainda que a Itália ou os italianos não são como os vemos, mostrados pela grande mídia. Faz ainda uma lista das dez coisas que mais gostaria de fazer. Só este prefácio já vale pelo livro.

Na primeira parte relata oito histórias do Vem embora comigo. Em Juro - fala sobre os ideais da Giovine Italia, e com muita emoção fala do espírito que moveu os precursores da unificação italiana e os contrapõem à arrogância da Liga Norte, dos dias de hoje. Em A Máquina da Lama, narra a história do principal juiz anti máfia, Giovanni Falcone, assassinado em 1992, quando se tornou heroi nacional. Antes  a máquina da lama o difamava. Em A 'Ndrangheta no norte relata a infiltração da máfia calabresa a comandar os negócios do rico norte italiano, na região da Lombardia. Piero e Mina é uma impressionante história de amor, em que Piero, acometido de distrofia muscular progressiva, escolhe a hora de dispensar os excessos terapêuticos e escolher a hora de morrer.
O grande nome do jornalismo investigativo italiano. Alto preço.

Em Detritos e Venenos se ocupa do lixo ilegal e tóxico da qual Nápoles é vítima. O tema tem um capítulo especial em Gomorra. Domínio total da máfia. Em A maravilhosa habilidade do sul Saviano conta a história de padre Giácomo que vai trabalhar no sul e relata as dificuldades enfrentadas nos trabalhos de assistência, em função da máfia. Em O terremoto em L'Aquila é mostrada a máfia da construção civil, tão ou mais culpada por mortes, quanto a ação dos terremotos e em A democracia vendida e o navio a vapor, apresenta a constituição como uma palavra viva. É um grande convite aos cidadãos honestos de participação na vida política.

Os três artigos da segunda parte são: O autorretrato de um chefão: o livro-razão da Camorra, onde é relatada a história de um ex chefe mafioso, Maurício Prestieri, que responde na justiça por seus crimes, em uma espécie de delação premiada. Ele faz revelações estarrecedoras; Em Grand Hotel Camorra, é narrada a vida luxuosa dos chefões da máfia, entre hotéis de luxo, cassinos e mulheres nas cidades de maior glamour do mundo; Já o artigo A Camorra nas urnas: os chefões donos do voto é narrado o envolvimento da máfia na política, bem como as suas formas de atuação.

Uma observação final. Como falei no início, Roberto Saviano não pode participar da festa literária de Paraty por ser uma espécie de "Salman Rushdie italiano na luta infindável contra o crime organizado". Por isso ele é jurado de morte pelas máfias italianas. Na narrativa de A Máquina da Lama existem duas referências muito sensíveis a uma morte com dignidade, as mortes de Sócrates e de Giordano Bruno. Não seria isso a manifestação de uma visível preocupação com a sua própria morte? Estaria o autor também preocupado com um final de vida digno de um grande batalhador, de um grande homem? O livro é uma declaração de amor à democracia e um grande convite à participação. A propósito, seguem as palavras derradeiras de Giordano Bruno:
No Campo de' Fiori, a estátua em homenagem a Giordano Bruno.

"Eu lutei, e muito: acreditei poder vencer (mas aos membros foi me negada a força do ânimo), e tanto a sorte quanto a natureza retiveram o estudo e os esforços. [...] No que me concerne, fiz o possível [...]: não temi a morte, não cedi em constância a nenhum dos meus semelhantes, preferi uma morte animosa a uma vida pusilânime". Muito parecido com a escolha de Sócrates.

2 comentários:

  1. infelismente JORNAIS,RADIO, TV, REVISTAS foi feito para diser e comunicar oque acontece mas acabão distorcendo protegendo em fim fazendo cabeças .

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  2. A máquina da lama. Fazendo cabeças. Os nossos meios de comunicação pouco colaboram na formação do humano. Lamentável. Obrigado pelo comentário, seu Arnaldo.

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