segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Mulheres de Cinzas. Mia Couto.

Mulheres de Cinzas é um romance do escritor moçambicano Mia Couto, lançado em fins de 2015. Embora eu conhecesse mais Mia Couto como contista, desta vez o encontro com ele se dá por um romance, que integra um plano maior. Logo ao abrir o livro, em sua primeira página, já lemos: As areias do imperador. Uma trilogia moçambicana. Estamos, portanto, no primeiro volume. Faço esta resenha, na parceria que o blog mantém com a Companhia das Letras. A Companhia das Letras publica o escritor no Brasil.
"A única saída para uma mulher é passar despercebida, como se fosse feita de sombras ou de cinzas".

Vamos situar o romance, que une "sua prosa lírica característica a uma extensa pesquisa histórica", lemos na orelha da capa. A pesquisa histórica é uma referência à dominação portuguesa sobre Moçambique, a sua terra natal. Vejamos o que o autor nos diz na esclarecedora nota introdutória: "Este é o primeiro livro de uma trilogia sobre os derradeiros dias do chamado Estado de Gaza, o segundo maior império em África dirigido por um africano. Ngungunyane (ou Gungunhame como ficou conhecido pelos portugueses) foi o último dos imperadores que governou toda a metade sul do território de Moçambique. Derrotado em 1895 pelas forças portuguesas comandadas por Mouzinho de Albuquerque, o imperador Ngungunyane foi deportado para os Açores, onde veio a morrer em 1906". (...)

O personagem central do livro é Imane, uma menina nativa de 15 anos, que é a principal narradora da história, tarefa que é intercalada com as cartas do sargento português, Germano de Melo, um degredado por haver participado de rebeliões contra o rei, em Portugal. O local dos acontecimentos é a cidade, ou melhor, o povoado de Nkokoline, mas as cidades de Inhambane e Lourenço Marques (atual Maputo) também são bastante citadas. As cartas do sargento são endereçadas para o Conselheiro José d'Almeida, sediado em Lourenço Marques e datadas do ano de 1884 e se estendem também para o ano seguinte. Nos situamos, portanto, no começo da narrativa.

Onde está a grande riqueza do livro? As virtudes do escritor já são bastante conhecidas. O seu lirismo, a sua poesia, a sua imaginação criativa, a sua magia mítica alcançam neste livro seus pontos culminantes. Destacaria também o imenso amor às tradições de sua terra, através das histórias que conta e da reverência aos seus valores que exalta. Um exemplo é Imani, uma menina cristianizada pelas missões portuguesas, num diálogo com o sargento: - "Mas tu não és católica? - Sou. Mas tenho muitos outros deuses". E estes deuses estão todos presentes nos muitos valores que lhes são transmitidos pelos antepassados. No caso do livro, especialmente pelo avô, pelo pai e pela mãe.

O outro grande tema é o do imperialismo, da dominação e da conquista. O imperialismo é o destroçar de tudo. Das tradições, dos valores, da solidariedade e dos laços familiares, dividindo, inclusive, os membros de uma mesma família. As cartas do sargento são um lamento permanente dos horrores causados pelas guerras e da impotência portuguesa diante das mesmas, por não conseguir o domínio sobre os nativos e por dividi-los com promessas impossíveis de serem cumpridas. São um lamento profundo e uma terapia psicanalítica permanente. Vai contando as suas frustrações, em meio a uma réstia de ternura, que nutre pela menina negra, Imani.
O premiadíssimo escritor moçambicano, nascido em 1955.

Até o escritor Eça de Queiroz é lembrado num desabafo sobre a sua terra: "Portugal acabou". E o lamento do sargento segue: "Ao escrever estas palavras diz ele que lhe vieram as lágrimas aos olhos. É essa a minha e a sua doença: a nossa pátria sem futuro, vazada pela ganância de um punhado, dobrada sob os caprichos da Inglaterra". O pavor do militarismo e do armamentismo também estão sempre sob certeira mira, como nos mostra este diálogo em que a mãe pede para o filho enterrar as armas: "Todas as armas? - perguntou o filho. Todas. As dos portugueses também. - As dos portugueses não podemos, mãe. - Você não entende uma coisa, meu filho. Não é a guerra que pede armas. É o contrário, as armas é que fazem nascer a guerra". E essa sobre o militarismo, posta em epígrafe num dos capítulos: "O soldado ganha a farda; o homem perde a alma."

Deixo ainda uma frase extraordinária sobre a ambição e toda a ganância do imperialismo, retirada do último dos 29 capítulos do livro: "Não sabe a italiana que no princípio de tudo, quando a terra não tinha ainda donos, os rios e as nuvens corriam por debaixo do chão. Chegou o demônio e espetou o dedo na areia. A sua unha comprida esgravatou nas profundezas. procurava pedras que brilhassem à luz do Sol. As nossas mães pediram aos deuses que protegessem as estrelas que haviam escondido debaixo da areia. pediram que o diabo abdicasse de arrancar os brilhantes minerais e que desistisse de os entregar à ganância dos que queriam enriquecer. Mas o diabo não desistiu. Porque ele tinha , entre os poderosos, quem rezasse por ele. E quebraram-se-lhe as unhas e sangraram os seus dedos magros e longos. Pela primeira vez no ventre da Terra se coagulou o contaminado sangue do demônio. As riquezas do subsolo estavam amaldiçoadas. As nuvens e os rios abandonaram o ventre do planeta para escaparem dessa maldição. E tornaram-se as veias e os cabelos da Terra".

A solidão do sargento Germano em Nkokoline me fez lembrar de uma outra solidão em um fim de mundo. O deserto dos Tártaros de Dino Buzzzati. As dores da existência são profundas, especialmente, quando esta carece de significado e, mais ainda, quando isso é percebido. Sobre o imperialismo, ainda uma última frase, posta em epígrafe, no capítulo 21. Ela é do imperador Teodoro II, da Etiópia: "Conheço o jogo dos europeus. Mandam, primeiro, os comerciantes e missionários; depois, os embaixadores; depois os canhões. Bem podiam começar pelos canhões".








2 comentários:

  1. Eloi, muito tempo e muitas coisas se passaram depois que fomos colegas de magistério no estadual de Umuarama. Gostei de saber que apreciamos a mesma leitura. Mia Couto, para mim, é um presente. Sensível, sábio, "antenado", criativo e tantos outros adjetivos que possam caracterizar um excelente homem das letras. Foi um prazer encontrar seu blog e Mia Couto nele. Abraço Maria Inez Masaro Alves

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  2. Oi Maria Inez. Satisfação reencontrá-la. Se o mundo lesse mais Mia Couto, com certeza que ele seria mais sensível e mais humano. É um artista da palavra e, lembrando Nietzsche, o dia em que a arte, e não moral, nortear a vida das pessoas...
    Um grande abraço.

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