sábado, 5 de março de 2016

Sepé Tiaraju. Romance dos Sete Povos das Missões.

Em nossa viagem pela região missioneira, por terras paraguaias, argentinas e gaúchas, já em Posadas, capital da província de Missiones, procurei uma livraria, atrás de bibliografia sobre uma das mais bem sucedidas e épicas utopias da história da humanidade. Encontrei apenas dois títulos, que por serem muito específicos, não me chamaram maior atenção. Já em São Miguel, numa banca de artesanato me deparei com cerca de 20 títulos referentes ao tema. Um deles foi o clássico do padre peruano, Antonio Ruiz de Montoya, A Conquista Espiritual.
O romance histórico de Alcy Cheuiche, em oitava edição, pela editora AGE. Sepé Tiaraju.

Minha atenção também se voltou para um outro título. Sepé Tiaraju - Romance dos Sete Povos das Missões, de Alcy Cheuche. Hoje pela manhã terminei de lê-lo. Um belo romance, com um primoroso prefácio. Este é de autoria do padre suíço Clóvis Lugon, autor de A República  Comunista Cristã dos Guaranis, que já estou providenciando na Estante Virtual. O romance histórico se divide em três partes: Livro primeiro: A gênese de um jesuíta; livro segundo: As missões do rio Uruguai e, livro terceiro: O Tratado de Madrid.

O romance histórico é muito bem construído, com todas as liberdades concedidas ao romancista. O narrador é o padre Miguel, se exercitando, num extremo esforço de memória, para reconstruir sua trajetória de vida, e a de Sepé, num crescendo extraordinário. A primeira parte do livro nos remete a Amsterdã, onde encontramos o jovem Michael, às turras com a violência familiar, praticada pelo tosco de seu pai, que confundia as letras com o ser maricas. Junto com uma pessoa amiga estabelece a sua rota de fuga, na qual encontra um marinheiro, Ben Ami, que se torna seu protetor e amigo. Entram também em cena as primeiras reminiscências sobre Sepé.
O livro de Cheuiche tem um prefácio memorável escrito pelo autor deste livro, Clovis Lugon.


A primeira parte termina num lamentável incidente na Ilha de Páscoa. Michael resolve permanecer no Peru, mesmo se separando de Ben Ami. A companhia com os padres jesuítas o leva a ser um sacerdote da companhia, com destaque todo especial para o padre Cattaneo. Agora será o padre Miguel e este rumará para o território das Missões, após conhecer o espanhol, o guarani e conhecimentos de medicina. Se fixará na Missão de São Miguel. Lá atende um menino com escarlate. Lhe salva a vida, mas não a de seus pais, que lhe lançam um apelo final. Tomar sob seus cuidados o menino. O menino é o próprio Sepé, filho dos caciques Tiaraju. Nesta parte do livro são feitas as mais belas descrições sobre o que foi este grandioso e utópico projeto, um projeto socialista e cristão. Todas as diferentes Missões atuavam interligadamente, com muita autonomia. Os jesuítas apenas supervisionavam o trabalho. Após os conflitos iniciais com os bandeirantes, derrotados na batalha de Mbororé, conhecem os seus cem anos de prosperidade.

Na descrição aparece com muito destaque a chegada do irmão Prímoli, o mais notável arquiteto da Companhia de Jesus, oriundo da Itália. Trazia consigo um monte de papéis cheios de desenhos. Estes começaram a ganhar forma, ao longo de dez anos de trabalho. É a catedral de São Miguel, aquela que sobrou em ruínas, que são hoje as mais visitadas. Foi avaliada em um milhão de pesos, pelo engenheiro chefe das tropas espanholas, conforme nos conta o padre Clovis no prefácio do livro. Conta também que chamava a atenção um candelabro de prata maciça, com trinta ramificações guarnecidas em ouro, suspenso na nave central da igreja, por uma corrente também de prata. As grandes riquezas foram a erva mate, o couro e o algodão. Não havia exclusão social nas Reduções. Do ponto de vista do conhecimento histórico, do que foram as Missões, é o capítulo mais interessante. O capítulo termina com a eleição de Sepé como o corregedor geral da Missão de São Miguel. O seu discurso de posse é um monumento à democracia.
A bela igreja de São Miguel, do italiano, irmão Prímoli, o maior arquiteto da Companhia.


Os cem anos de tranquilidade do projeto chegam ao seu final com a realização do Tratado de Madrid em 1750. O padre Miguel o conhecerá com a chegada do padre Balda, que lhe traz, de Roma uma carta do padre Cattaneo. Em suas memórias o padre Miguel destaca as seguintes cláusulas: "Artigo XIV. Sua Majestade Católica, em seu nome e de seus Herdeiros e Sucessores, cede para sempre à Coroa de Portugal todas e quaisquer povoações e estabelecimentos que se tenham feito por parte da Espanha no ângulo de terras compreendido entre a margem setentrional do rio Ibicuí e a oriental do Uruguai".

"Artigo XVI. Das Povoações ou Aldeias que cede sua Majestade Católica na margem oriental do Uruguai sairão os missionários com todos os móveis e efeitos, levando consigo os índios para aldear em outras terras de Espanha; e os referidos índios poderão levar também todos os seus móveis e semoventes, e as Armas, Pólvora e Munições que tiverem; em cuja forma se entregarão à Coroa de Portugal, com todas as suas Casas, Igrejas e Edifícios e a propriedade e posse do terreno".

"Artigo XXII. Determinar-se-á entre as duas Majestades o dia em que se hão de fazer as mútuas entregas da Colônia do Sacramento com o território adjacente, e das terras e Povoações compreendidas na cessão que faz sua Majestade Católica na margem oriental do rio Uruguai; o que não passará do ano, depois de se firmar o Tratado".

Sepé organizou o povo também militarmente e resistiu bravamente. Foi ao encontro de portugueses e espanhóis, unidos na destruição do projeto cristão e socialista. Só não venceu porque muitos padres mantiveram-se fiéis ao voto de obediência aos seus superiores e aceitaram a humilhação da capitulação. Uma dúzia de jesuítas, no entanto, permaneceu obediente a Deus e coerente com o projeto de evangelização e humanização e permaneceram ao lado dos caciques indígenas, como o vinham fazendo ao longo mais de cento e cinquenta anos.
O romancista gaúcho Alcy Cheuiche.


Sepé foi o primeiro a tombar. A derrota final abateu também o seu herdeiro, o novo comandante Nhenguiru, no conhecido massacre de Caiboaté. Finalmente os índios se retiraram para o outro lado do Uruguai, no refúgio em terras argentinas. Pouco depois, em 1767 os jesuítas também foram expulsos dos territórios espanhóis e em 1773 a Companhia de jesus foi extinta pelo papa. Em 1814 houve a refundação, quando o projeto socialista e cristão já não mais ameaçava os alicerces da cultura ocidental, cada vez mais individualista sob os princípios do liberalismo. O latifúndio desquerenciou os guaranis.

Sepé foi semeado em cova rasa e, rapidamente floresce o mito e todo o simbolismo de amor à terra, às causas abraçadas e de lealdade de princípios, princípios estes, herdados com a fantástica experiência da República Comunista Cristã dos Guaranis. Embora não canonizado, Sepé virou santo e a cidade com o seu nome, além de toda a força da fé popular, é a sua prova decisiva. Que o diga o povo da cidade gaúcha de São Sepé. Um romance simplesmente extraordinário, que está em 8ª edição e com edição em espanhol e em alemão. Esta experiência também chamou a atenção de toda a Europa erudita do século XVIII, de sábios como Voltaire, Montesquieu e d'Alembert, nos conta Lugon em seu prefácio ao belo romance histórico.




2 comentários:

  1. muito bom estou conhecendo um pouco mais dos PAMPAS

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  2. Este romance é ótimo. A experiência das missões foi um dos projetos mais humanos que o mundo conheceu e, por ironia do destino, foi implantado pelos guerreiros da contra reforma. Foram mais de cem anos de paz e de progresso. Um abraço seu Arnaldo.

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