quarta-feira, 9 de maio de 2018

A formação da cultura ocidental. O encontro e a fusão de três culturas.

Estou participando de um grupo de leituras, formado por professores da rede estadual de ensino público do estado do Paraná, que tem por objetivo principal a formação de leitores, além de, obviamente, metabolizar conhecimento. Depois da leitura do Banquete e da Apologia de Sócrates, a próxima grande leitura proposta é a das Confissões de Santo Agostinho. Com isso entramos numa das características mais marcantes da cultura ocidental, que é a presença do cristianismo.

Para que as leituras tenham maior significado, algumas ligações precisam ser feitas. A primeira é esta, este texto do Antônio Joaquim Severino, do seu maravilhoso livro, Filosfia, onde o capítulo 3 é dedicado à formação da cultura ocidental. Ainda, em outros posts, vamos falar de Paulo e de Constantino, que além de Agostinho, deram consistência à doutrina e à afirmação do cristianismo. Neste sentido é que recorremos ao livro de Severino.
Um encontro do grupo. Desta vez foi o Banquete de Platão.

"O encontro e a fusão de três culturas

Quaisquer que tenham sido as condições econômico-sociais da formação e do desenvolvimento histórico da sociedade e da cultura do ocidente, é possível constatar que o nosso mundo, forjado no espaço geográfico do Mediterrâneo, resultou do entrecruzamento de três grandes vetores culturais: o judaísmo, o helenismo e o cristianismo. As feições da cultura ocidental são resultantes do confronto, do diálogo, da afirmação ou da negação de princípios fundamentais que embasavam a concepção da existência humana e a visão de mundo dessas três culturas. Essas concepções básicas dão conta das orientações que os homens buscaram imprimir em sua ação e em sua história, justificando, ideologicamente o mais das vezes, as suas opções políticas.

Assim, é possível dizer que o atual Ocidente deve sua origem histórica ao encontro de três pequenos povos: os romanos, os judeus e os gregos. Os povos judeu e grego, do ponto de vista quantitativo, político e militar, pouca significação teriam. Tanto isso é verdade que sua atuação só foi eficaz e fecunda quando entrou em cena o povo romano, este sim, militar, política e administrativamente forte, embora pouco significativo do ponto de vista específico da cultura filosófica. A história do Ocidente começa, pois, quando os romanos conquistam militar, econômica e politicamente o mundo banhado pelo Mediterrâneo, impondo sua organização administrativa imperial que desmantelava os círculos fechados das culturas dos vários povos que até então viviam, até certo ponto, isolados uns dos outros.

O mundo romano tornara-se um mundo cosmopolita, abrigando todos os povos da época, subjugados pela pax romana. Foi nesse contexto do Império Romano que as duas culturas mais importantes daquele momento puderam se encontrar e se expandir. Esse encontro provocou novas mudanças nas concepções de mundo, como ocorreu no caso do cristianismo.
O extraordinário livro de Antônio Joaquim Severino, donde extraímos este texto.

A cosmovisão judaica

Mas quais as posições básicas do judaísmo? O judaísmo era não só uma religião, uma doutrina mística e teológica, mas também todo um substrato cultural de uma civilização mediterrânea. Tem sua história e seus princípios registrados na Bíblia, na parte correspondente ao Velho Testamento. Em sua literatura teológica, o povo judeu sempre se entendeu como um povo privilegiado, com quem Deus fizera uma aliança e a quem prometera um destino muito importante e significativo, ultrapassadas as dificuldades de toda ordem que deveria enfrentar historicamente.

O que subjaz a toda essa narrativa bíblica? Que é um Deus todo-poderoso, senhor e criador do Universo, que promete salvar o povo judeu, por ele escolhido para ser seu representante na Terra. Note-se que não se trata de salvar o indivíduo como tal, mas a comunidade, o povo que for fiel a Deus, sendo essa salvação um acontecimento histórico, uma vez que se dará no decorrer da história; os homens que constituem a comunidade que será salva são os indivíduos concretos: os judeus não enfatizam então a dualidade corpo e alma. Portanto, o que se tem de básico na visão judaica são os seguintes princípios: 1. a historicidade, o sentido histórico dos acontecimentos; 2. o sentido do coletivo, do caráter comunitário prevalecendo sobre o individual; 3. o sentido da unidade do homem e da valorização do corpo; 4. a visão de Deus como um ser pessoal, cheio de reações análogas às dos homens com quem a comunidade judaica se relaciona e faz alianças.

O texto seguinte, extraído do Deuteronômio, um livro bíblico do Antigo Testamento, dá bem a ideia de como o judaísmo considerava Deus e suas relações com os homens. Esse livro é tido como o Evangelho do Antigo Testamento e expõe os discursos de Moisés ao povo israelita (Segue a transcrição dos capítulos 7 e 8 do Deuteronômio).

A cosmovisão grega

Do outro lado do Mediterrâneo, na Grécia, surgia de um pequeno agrupamento humano uma outra importante cultura e que também elaborara todo um sistema teórico de interpretação do real e da existência do homem. Não se julgava ligado a nenhum Deus pessoal, o universo se explicava, sim, por um princípio puramente racional, por um logos; os homens, naquilo que lhes é específico, são assim por "participarem" desse logos. Cada homem responde individualmente por seu destino e por seu agir nesta terra, devendo, pois, adequar-se o mais possível às exigências do logos, agindo assim sempre racionalmente, o que implica apoiar-se cada vez mais na sua alma, o corpo sendo apenas um obstáculo ao pleno desenvolvimento da alma.

Ao contrário dos judeus, os gregos: 1. privilegiavam a estabilidade, a permanência, já que o logos é sempre idêntico a si mesmo, imune ao tempo - desconheciam assim a historicidade; 2. valorizavam o individual, a "salvação" sendo uma responsabilidade exclusiva de cada homem; 3. enfatizavam o dualismo do ser humano, contrapondo matéria e espírito, corpo e alma, a "salvação" interessando apenas à alma; 4. o princípio divino é uma entidade totalmente impessoal; 5. o todo é visto sob a unidade de princípio fundador, que é uno.

A cosmovisão grega se expressa bem no fragmento que se segue, de autoria de Anaxágoras, pensador pré-socrático que viveu de 500 a 428 a. C., em Atenas. O jeito de pensar e de falar do "espírito" é bem diferente daquele do autor bíblico: o espírito é como se fosse um princípio, racional e impessoal.

"11 - Em cada coisa, há uma porção de cada coisa, exceto no espírito; em algumas, contudo, também há espírito.
12 - Todas as outras coisas participam de todas as coisas; o espírito contudo, é ilimitado e autônomo, com nada misturado, mas só, por si e para si. Pois se não fosse para si mesmo e se estivesse misturado com qualquer outra coisa, participaria de todas as coisas, desde que estivesse misturado a qualquer uma delas. porque em todas as coisas há uma parte de todas as coisas, como foi dito por mim no que precede; e o que lhe estaria misturado impediria qualquer poder sobre toda coisa, assim como tem agora sendo só para si. Pois é a mais fina de todas as coisas e a mais pura e tem todo conhecimento de todas as coisas e a maior força. E o espírito tem poder sobre todas as coisas que tem alma, tanto as maiores como as menores. Também sobre toda a revolução tem o Espírito poder, e foi ele quem deu o impulso a esta revolução. E esta revolução moveu-se em um pequeno começo; agora estende-se mais e estender-se-á ainda mais. E todas as coisas que com ela se misturaram, se separaram e se distinguiram, são conhecidas pelo Espírito. E o Espírito ordenou todas as coisas, como deveriam ser e como eram e agora não são, e as que são e como serão; e também a esta revolução na qual se movem agora as estrelas e o Sol e a Lua o ar e o éter, que estão separados. E esta mesma revolução operou a separação. E do ralo separou-se o denso, o quente do frio, o luminoso do escuro, o seco do úmido. E há muitas partes de muitas coisas. Mas nenhuma coisa é completamente separada ou distinta de nenhuma outra coisa, exceto o Espírito. O Espírito é sempre o mesmo, tanto o maior como o menor. Ao passo que nenhuma outra coisa é semelhante a outra coisa, mas cada coisa singular é e era manifestamente aquilo que mais contém.
13 - E quando o Espírito começou o movimento, separou-se de tudo o que era posto em movimento; e tudo o que o Espírito pôs em movimento foi separado. E quando as coisas foram postas em movimento e separadas, a revolução separou-as ainda mais umas das outras.
14 - O Espírito, que é eterno, é certamente também agora, lá, onde é toda outra coisa, na massa circundante, e naquilo que foi por separação unido a ela, e no separado. (Fragmentos 11-14. In Gerd Bornheim (org.) Os filósofos pré-socráticos).

O encontro dessas duas cosmovisões no cristianismo.


Essas duas concepções de mundo, que durante séculos se desenvolveram isoladas, se encontraram e se confrontaram graças a expansão do Império Romano. O cristianismo vai então entrar em cena como sua síntese cultural.  Originando-se como um movimento social e religioso enquanto dissidência do judaísmo, vai incorporando os princípios fundamentais do pensamento grego, no seus elementos gerais: o helenismo. É através do cristianismo que esses princípios serão legados ao Ocidente, marcando-lhe as feições. De meu ponto de vista, a impregnação dos princípios filosóficos gregos no cristianismo foi profunda e radical, prevalecendo de maneira expressiva sobre os princípios teológicos judaicos. Toda a história da filosofia e da teologia no Ocidente, a partir da constituição do cristianismo, só faz comprovar esse movimento contínuo de helenização do judaísmo. Não é, pois, sem razão que se pode afirmar que o Ocidente é filho do racionalismo grego.

O próprio Novo Testamento já testemunha essa transformação. Mas foi sobretudo São Paulo, judeu formado no espírito do helenismo e que foi o grande organizador da Igreja primitiva, quem consolidou o espírito grego no seio do próprio cristianismo. Na sua postura apostólica, na sua atividade pastoral, buscando atingir e convencer os "gentios", é levado a incorporar cada vez mais elementos helênicos na sua doutrina, fundindo-os harmoniosamente com pontos básicos do judaísmo: Deus criador e salvador dos homens, através de Cristo, o verdadeiro Messias.

Vejamos agora como a visão cristã, expressa na Introdução do Evangelho de São João, já soa helenizada e sintetiza bem, unindo-os intimamente, elementos do judaísmo e do helenismo. Evangelho de São João. 1. 1-18.

Nos primeiros quatro séculos de nossa era, a tarefa dos padres da Igreja foi justamente a de sistematizar e organizar a doutrina cristã para divulgá-la aos habitantes do Império Romano. Precisavam marcar sua identidade frente ao paganismo romano mas também frente ao pensamento grego; contudo, ao mesmo tempo, era necessário elaborar um discurso acessível a essa população de "gentios", uma vez que o cristianismo visava ultrapassar o mundo judeu.

Após o fim do Império Romano, com a doutrina já consolidada, a tarefa que se impunha então era não só a evangelização mas até mesmo a educação dos novos "bárbaros", vindos do Norte da Europa, invadindo o seu território.  Os teólogos da Igreja continuariam assim a desenvolver a doutrina cristã ao mesmo tempo em que construíam um método pedagógico para "civilizar" essas populações. Tanto para um como para outro objetivo, é novamente o pensamento grego que servirá de base. Tal é o sentido do trabalho desenvolvido pela Igreja na Idade Média. E o fato de a Igreja ter seguido esse caminho, ter se apoiado, agora explicitamente, na filosofia grega, serve para comprovar a afinidade de concepções básicas do cristianismo com aquelas do pensamento grego.

Nessa reelaboração, dois pensadores medievais cristãos tiveram papel de destaque: santo Agostinho e santo Tomás de Aquino. O primeiro compatibilizando a teologia e a ética cristã com a filosofia platônica; o segundo fazendo o mesmo com a filosofia aristotélica. Em ambos os casos salvaguardando os princípios básicos da herança judaica.
Platão e Aristóteles representados por Rafael. Depois santo Agostinho batizou Platão e santo Tomás de Aquino Aristóteles.


Todo o pensamento moderno procede da cosmovisão grega

Os elementos fundamentais do modo de pensar grego se incorporaram definitivamente ao pensamento ocidental, permanecendo até hoje. Assim, no Renascimento há uma crítica ao pensamento medieval, à escolástica e, aparentemente à filosofia aristotélico-tomista que a fundamentava. Mas isso é só aparência. Na realidade, a crítica renascentista era uma retomada ainda mais apurada do naturalismo e do racionalismo dos gregos, livrando-os dos elementos metafísicos e teológicos que ainda os limitavam. A força desse movimento é tão grande que o próprio protestantismo, ao pleitear o livre exame da consciência, nada mais fazia do que reforçar o racionalismo e o individualismo. Mas, de modo particular, a ciência é fruto acabado do naturalismo e do racionalismo gregos. Ela surge em decorrência direta da convicção dos pensadores modernos de que o mundo constituído de acordo com as leis racionais, "geometricamente", pode ser perfeitamente lido e manipulado pela razão humana, mediante um atento trabalho de observação e de raciocínio matemático, sem ter que se recorrer a qualquer outro tipo de ajuda ou de inspiração.

Sobre essa influência profunda do pensamento grego na formação do pensamento moderno, voltaremos a tratar, de maneira mais aprofundada, nos capítulos 7 e 8. Por enquanto, estou apenas adiantando o quanto a revolução científica da época moderna, que fundava o projeto iluminista da cultura ocidental, com suas consequências tecnológicas e sociais, é toda baseada na reafirmação dos pressupostos do pensamento filosófico grego.

O próprio capitalismo é fundado nesse racionalismo

Por outro lado, o modo de formação econômico-social, tal qual se dá sob o capitalismo moderno, também está relacionado com essa visão de mundo que, por sua vez, já é também um reflexo das forças econômicas e sociais relacionadas com a produção que estiveram atuando na constituição da sociedade ocidental, dando-lhe sua configuração. O capitalismo é o modo de produção que encontra no naturalismo e no racionalismo não só sua expressão epistemológica como também a sua justificação ideológica. Por isso nunca fomos tão gregos como atualmente...

Como teremos a oportunidade de constatar na análise de vários aspectos da realidade socicultural do Ocidente, mesmo na sua atualidade, nossas concepções de mundo continuam profundamente marcadas pelos pressupostos da filosofia grega. E isso explica muitas coisas".

SEVERINO, Antônio Joaquim. Filosofia. São Paulo: Cortez. 1992.  Páginas 45 - 53.


"No olvidemos que Roma es sinónimo de civilización, en la medida en que ha garantizado, a través de su estructura imperial, una lengua oficial común, la fluidez de las comunicaciones, la transmissión de la cultura, la vigencia del derecho, la organización comercial, la defensa de la frontera; es decir, en última instancia, las condiciones de possibilidad de la vida humana en sociedad. BORON, Atilio A. (Compilador) La Filosofia Política Clássica - De la Antiguidad al Renacimiento. Colección Clacso - Eudeba. Capítulo III. Augustín: El pensador político. Página 134 - 135.

2 comentários:

  1. Se nas origens temos o helenismo + judaísmo reunidos sob um mesmo império - Roma - que foi o berço da junção e fundação do cristianismo, é preciso considerar que a questão da salvação e da ressurreição individuais foram extraídos da cultura egípcia! Nela, haveria ressurreição, por isso embalsamavam os reis, depois os nobres... claro a ressurreição tem classe social!!! Na formação do pensamento Ocidental também teve importância, a partir dos anos 900 a presença dos muçulmanos! A obra de Tomás de Aquino deve muito aos árabes!

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  2. Obrigado João Wanderley Geraldi pela sua valiosa contribuição. O nosso grupo de leitura está maravilhoso.

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