Uma passada pelos Nobel de Literatura me fez encontrar com o sul-africano John Maxwell Coetzee, laureado com o prêmio no ano de 2003. O livro dele que mais mereceu a minha atenção foi o À espera dos bárbaros, uma publicação do ano de 1980. A primeira edição brasileira veio, certamente, na esteira do Nobel, no ano de 2006. A edição é da Companhia das Letras e a tradução é de José Rubens Siqueira. A edição que eu li é de 2018. Estava envolvido em leituras sobre o colonialismo. Uma intuição me fez crer que este seria o grande tema do livro. Eu estava certo.
A edição brasileira de À espera dos bárbaros.
A edição brasileira não tem apresentação, nem do escritor, nem do livro, a não ser as rápidas notas das orelhas do livro. Também não encontrei muitas referências em outras fontes. Sua leitura me causou um profundo mal-estar, certamente, pelos dias que estamos vivendo no Brasil de hoje, uma era de tributo à ignorância e de cultivo ao anti intelectualismo. Creio que o meu mal-estar já era anterior à leitura, apenas ele aprofundou situações que, ao menos para mim, são absolutamente visíveis e nada boas. Ignorância e arrogância sempre caminham juntas. No livro sobrou para o coronel Joll e a um subtenente. Isso me levou a pensar sobre a pretendida disseminação das disciplinadoras escolas militarizadas.
Na contracapa temos uma transcrição que se refere ao fim da vida tranquila que o magistrado, ou o administrador de uma distante colônia nos confins do império levava. Foram trinta anos de muita paz: "Eu não queria me envolver nisto. Sou um magistrado da roça, um funcionário responsável a serviço do Império, servindo meus dias nesta fronteira preguiçosa, esperando para me aposentar. Recolho o dízimo e os impostos, administro as terras comunais, cuido de que não falte nada para a guarnição, supervisiono os funcionários juniores, que são os únicos funcionários que temos aqui, fico de olho no comércio, presido o tribunal duas vezes por semana. De resto, vejo o sol nascer e se pôr, como e durmo, e estou contente. Quando morrer, espero merecer três linhas em letra miúda na gazeta imperial. Não pedi nada mais que uma vida tranquila em tempos tranquilos.
Mas no ano passado começaram a nos chegar da capital histórias de inquietação entre os bárbaros". A minha surpresa foi a de que essa passagem consta já das primeiras páginas do livro. Posso adiantar também que o "magistrado da roça" também cometia uns pecadinhos, aqueles que certamente você já está adivinhando. Elas foram prato cheio para os seus moralistas acusadores. Volto à apresentação, agora na orelha do livro:
"Num lugarejo da província ocidental de um império sem nome, um magistrado cumpre seus deveres cotidianos, à espera da aposentadoria próxima e do obituário em letra miúda na gazeta oficial. É um funcionário correto, exemplar sem ser fervoroso. Em nome de uma ordem que não lhe cabe questionar, recolhe impostos, dita sentenças e vez por outra afugenta os bárbaros maltrapilhos que habitam o deserto escaldante. Seus pensamentos mais íntimos e melancólicos ele sabe guardar para si, para as horas em que se dedica a escavar as ruínas vizinhas, cobertas pela areia.
Seus dias de modorra moral chegam a um fim abrupto pelas mãos de um certo coronel Joll, oficial da misteriosa Terceira Divisão da Guarda Civil (um corpo de guardas do Estado, devotos da verdade e doutores do"interrogatório", que vem da capital para investigar e reprimir, por todos os meios, um suposto movimento de sedição entre os bárbaros que vivem além das fronteiras imperiais. Os rumores a respeito são mais do que tênues, o que não impede o coronel de torturar prisioneiros e silenciar dissidentes - entre os quais o magistrado, que não soube tapar os ouvidos a tempo..
Partindo desses elementos mínimos, À espera dos bárbaros, livro de 1980, revela o radicalismo das preocupações éticas que fazem a força de toda a prosa do sul-africano J.M. Coetzee. Mas engana-se quem quiser ver aqui apenas uma alegoria da vida sob o apartheid. Os dilemas sul-africanos, que certamente estão na origem do romance, servem de veículo para uma profunda meditação sobre a natureza do poder, da censura, do compromisso e da moral em tempos difíceis. Ao narrar as tribulações do magistrado, Coetzee compôs uma fábula que reúne ecos da grande literatura modernista (Kafka, Buzzatti e o Kaváfis do poema "À espera dos bárbaros") e lança sua sombra sobre os impérios do presente".
Perfeito. O coronel Joll também é um perfeito retrato da força do termo "banalidade do mal", de Hannah Arendt. Ele executava burocraticamente, com a ausência total de qualquer sensibilidade, as mais horripilantes e inimagináveis torturas. E os guardas e até as crianças já participavam das "brincadeiras". Um subtenente era o seu discípulo imediato. E por falar em Hannah Arendt, também me lembrei de Adorno, em sua palestra de rádio "Educação após Auschwitz", quando pergunta quem poderiam ser as próximas vítimas dos holocaustos. Quem seriam os novos bárbaros? Os novos Aussländer, os novos habitantes para além das fronteiras. Ah sim! Ainda é preciso lembrar que nenhuma ideologia funciona se não criar um poderoso inimigo para combater.
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