segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Dois papas. Fernando Meirelles.

Assim que soube que o filme, Dois papas, estava em cartaz, fui imediatamente ao cinema. Cine Passeio, um belo espaço cultural na cidade de Curitiba. Tenho verdadeira veneração pelo papa Francisco e pouca, pelos papas João Paulo II e Bento XVI. Os motivos são óbvios. O caráter humanitário e a preferência pelos pobres, por parte de Francisco e pelo reacionarismo e conservadorismo dos outros dois. Essas marcas estão fortemente presentes no filme.

A Civilização Ocidental é profundamente cristã e capitalista. Esses princípios estão em nós, pelas entranhas. Respiramos os seus valores. A sua influência sobre nós é até maior do que pensamos. Muitas vezes eu paro para refletir sobre a forma, sobre o como eu me constituí. Nasci em meio a uma família muito pobre, que imaginava ser muito feliz. A religião, no caso, o catolicismo foi o grande responsável por isso. Vivíamos sob a proteção de Nossa Senhora de Fátima, que nos protegia do nosso maior inimigo, o comunismo, que nem sequer conhecíamos.

Pensando sobre as mudanças em minha vida, mais uma vez a religião foi a grande responsável. Fui para o seminário na mais tenra idade e, um pouco mais crescido, veio o papa João XXIII e o Concílio Vaticano II. Depois veio Paulo VI. Aprendi então que a religião é muito mais presença no mundo do que espiritualidade. Presença humanizadora, para não desfigurar a criatura, criada à imagem do Criador. Por tudo que olhava, só via desfiguração. Mudanças na maneira de pensar e de ver o mundo foram tomando conta de mim. Passei a acreditar que a não desfiguração do humano passava muito mais por políticas públicas do que por orações, jejuns, confissões e similares.

Bem, mas vamos ao filme. Dois papas, um filme do grande cineasta brasileiro Fernando Meirelles, com roteiro escrito pelo biógrafo do papa, Anthony McCarten, é extraordinário. Leve, profundo e muito bem humorado. Os dois papas tem seus traços de personalidade revelados. E, acima de tudo, o filme é muito respeitoso e humano. Bento é alemão, um intelectual introspectivo, pouco dado ao debate e ao diálogo. Não gostava de ser contestado. Francisco é argentino, extrovertido, hábitos simples, de bem com a vida e extremamente popular.

A questão do papado é o tema central do filme. Como conduzir a Igreja em tempos de profunda crise. A missão foi confiada ao cardeal Ratzinger, um dos expoentes da igreja conservadora e autoritária. No filme chega a ser xingado de papa nazista. Ele não se dá bem na condução e a Igreja só vai perdendo fiéis e ele não vê culpa sua nisso. O cardeal Bergoglio o adverte sobre a questão, além de outras questões a mais, como os escandalosos abusos sexuais de pedofilia de padres que são ocultados, assim como relações de homosexualidade no Vaticano, além de questões financeiras. Na cabeça de Bento, ocultar seria preservar. E a idade avança.

Bergoglio também vê a idade avançando. Chega aos 75 anos e pensa em ir a Roma e solicitar para Bento a sua aposentadoria, assumindo apenas uma pequena paróquia em Buenos Aires. Ao mesmo tempo em que pensa ir ao Vaticano, Bento o chama para uma conversa. Essa se dará em Castel Gandolfo, o palácio de verão dos papas. Bento anuncia predisposição para a renúncia. Bergoglio reage. Isso não existe na Igreja. Bento lhe fala da renúncia de Celestino V. Sugere que Bergoglio o suceda.

Essa renúncia de Celestino V mereceu uma menção nada airosa por parte de Dante Alighieri, na sua Divina Comédia, em que o papa renunciante não está nem no paraíso, nem no inferno. Por vacilar, nem Deus e nem o demônio o quiseram.  Mas, caso à parte, Bergoglio rejeita a indicação e aponta os motivos. É o momento em que o filme atinge o seu ponto máximo. Os dois papas fazem o acerto de contas com o seu passado. Bento fala de seus problemas, enquanto que Bergoglio rememora o seu passado e a sua ligação com a ditadura militar Argentina. Esse passado o atormenta. Em cena grandiosa, os dois se confessam e se absolvem mutuamente.

Além dos problemas à frente da Igreja, Bento vai envelhecendo e começa a fraquejar fisicamente. A cegueira o atinge em um de seus olhos. A renúncia passa a ser realidade. Bergoglio, que já tivera votos no conclave anterior, será o novo papa escolhido, inclusive, como uma indicação de Bento. Bergoglio se transforma em Francisco. Na abertura do filme aparece a imagem do jovem São Francisco recebendo de Deus a missão de reformar a sua igreja. E não era a igreja que Francisco frequentava. Era a reforma da própria Igreja como instituição. É a missão que aguarda Francisco.

Os dois papas ficam amigos e Bento dialoga constantemente com Francisco. Ele chega até a ser contagiado por alguns hábitos de vida de Francisco. Em cena memorável, os dois assistem juntos a partida decisiva entre Alemanha e Argentina, pela Copa do Mundo de 2018. E uma coisa notável. Bento se afasta completamente das decisões do Vaticano, agora confiadas a Francisco. A existência de dois papas não é uma ameaça à unidade da Igreja. 

Enfim, o filme é grandioso, misturando história e ficção. Ele atinge o humano em suas melhores partes e momentos. E o que dizer dos atores que dão vida aos personagens. Anthony Hopkins como Bento XVI e Jonathan Pryce, como Francisco. Uma produção da Netflix. Oscar à vista?

E uma última referência. Francisco é realmente uma bênção de Deus. Uma das únicas vozes, com poder de fala, numa época em que o mundo capitalista mergulha profundamente em trevas, que podem levá-lo à autodestruição. E que Francisco, assim como João XXIII e Paulo VI influenciaram um menino de outrora, que agora, Francisco inspire outros meninos a trilharem os seus passos.

O filme mereceu três indicações ao Oscar:
Melhor ator
Melhor ator coadjuvante
Melhor roteiro adaptado.

Não logrou nenhuma estatueta.

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