sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Cartas persas. Montesquieu.

Cheguei à leitura dessas cartas através de Dos delitos e das penas de Cesare Beccaria. O pensador do iluminismo no campo do Direito nos diz que se voltou para os estudos filosóficos através da leitura das Cartas persas de Montesquieu. Para situar o autor e a obra lembramos que Montesquieu nasceu em 1689 e morreu em 1755. As cartas são de seu tempo de juventude, escritas ao longo dos anos, entre 1711 e 1720.
Cartas persas. filosofia, política, moral e muito mais.

A edição brasileira da obra parte de uma nova edição francesa do ano de 2003 e lançada aqui no ano de 2009. A grande referência dessa edição é o historiador de ideias e crítico literário francês Jean Starobinski, que fez as adaptações para se ter um texto moderno a partir de uma edição do ano de 1875. Starobinski também é o autor de uma vigorosa e esclarecedora introdução à obra, bem como o responsável por inúmeras notas esclarecedoras, de contextualização, ao longo da obra. Ressalte-se que essa introdução é absolutamente necessária para bem entender a leitura.

Embora seja uma obra da juventude de Montesquieu ela é extremamente erudita e fruto de um espírito extremamente observador e crítico de seu tempo, além de traçar um paralelo entre diversas visões culturais da época, com grande destaque para a cultura francesa e a persa. Portugueses e espanhóis também recebem boas estocadas, especialmente, para o grande instrumento de poder por eles largamente utilizado, que foi a inquisição. Mas a maior invenção do autor foi o fato de ter escrito tudo isso sob a forma de cartas, 161 ao todo, e de fazer delas, em sua sequência, um esplendoroso romance.

Os grandes autores das cartas são dois jovens persas, que saíram da cidade de Ispahan, localizada no Irã e que de acordo com uma breve consulta, é a segunda cidade do país, localizada a 340 quilômetros de Teerã e que conta com dois milhões de habitantes. Usbek e Rica são esses dois persas e o mote de sua viagem é a busca do conhecimento. Para conhecer é preciso sair dos limites de uma única cultura, de uma única visão de mundo. Depois de longa viagem eles se estabelecem em Paris, de onde trocam cartas com as pessoas que ficaram na cidade de origem e com outras pessoas persas que também empreenderam viagens mundo afora. De Paris observam a política francesa dos tempos de Luís XIV. Paris é o seu posto privilegiado de observações, do poder, das religiões, da moral e das relações interpessoais.

Inúmeras das cartas escritas por Usbek apontam para as suas preocupações com o que deixou em sua cidade natal. Ele era um homem muito poderoso e por isso mesmo detentor de um grande número de mulheres, entre escravas e esposas, mantidas à disciplina de ferro e fogo, sob a severíssima vigilância de um pequeno exército de eunucos. Os eunucos chefes tanto escrevem como recebem cartas de Usbek. O tempo e a distância lhe trazem inúmeras preocupações, temendo, e não sem motivos, uma rebelião no serralho. Esse trato dos persas com as mulheres, e obedientes aos ditames do profeta Maomé é seguramente um dos pontos altos do livro. Também os eunucos merecem atenção especial. Destituídos da virilidade são investidos de muito poder. De um estranho poder, junto com o desprezo total da sociedade.

Do que Beccaria teria gostado tanto nesse livro? As conjecturas necessariamente nos levam a uma análise das estruturas de poder, as dos franceses, as dos persas e seus inimigos turcos, dos russos, dos portugueses e espanhóis com as violências praticadas em suas colônias, as liberdades da Holanda...  Motivos certamente não lhe faltaram.

Um dos aspectos mais destacados da obra é a sua forma. A forma da carta. Elas conferem ao autor uma certa distância, ou até mesmo uma espécie de anonimato. Os autores das cartas são Usbek, Rica, Nessir, Rhedi e não Montesquieu, embora toda a autoria seja dele. E alinhar cartas na forma de um romance foi uma novidade sem par e que caiu profundamente no gosto popular. O povo queria sempre mais e novas cartas.

A edição brasileira é da wmfmartinsfontes, com tradução de Rosemary Costhek Abílio e apresentada, estabelecida e anotada por Jean Starobanski. A editora é especializada em editar clássicos, "não só os textos gregos e latinos, mas também outros, mais recentes, que imprimiram em sua trajetória histórica marcas indeléveis em nossa civilização". As Cartas persas, sem dúvida, possuem essa grande marca.

Na contracapa do livro temos, um comentário atribuído ao próprio Montesquieu: "Nada agradou mais nas cartas do que o leitor encontrar nelas, inesperadamente, uma espécie de romance. Adotando a forma de cartas, o autor deu-se a vantagem de poder juntar filosofia, política e moral a um romance, e de unir o todo por um encadeamento secreto e, de certa forma desconhecido"

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