Vou começar este post apresentando um fato de grande repercussão. No programa de Televisão de Pedro Bial, o ex juiz e agora Ministro da Justiça, Sérgio Moro concede uma entrevista. Uma das perguntas feitas pelo entrevistador não deve ter seguido as regras do programa, uma vez que deixou o entrevistado numa situação profundamente constrangedora. Bial perguntava sobre livros. Moro se declarou assíduo leitor e manifestou grande preferência pela leitura de biografias. Bial então perguntou sobre as últimas que tinha lido. Tentou enrolar..., mas não teve jeito. Não lembrou de uma única sequer. Situação de absoluto vexame.
Posteriormente, em artigo na Folha de S. Paulo (18.092019), Gregório Duvivier tentou socorrer o ministro, lhe recomendando três biografias, entre elas O Tiradentes, de Lucas Figueiredo. Li o livro, excelente, por sinal. Uma passagem me chamou atenção especial e me fez lembrar da recomendação do articulista. Ela está no capítulo 16 e ocupa as páginas 247 a 250. O capítulo não tem título mas versa sobre a reação da Coroa ao levante de Tiradentes e de seus companheiros. Versa sobre a questão da delação. Esse instrumento de origem medieval foi muito utilizado pelo então juiz que estava à frente da Força Tarefa Lava-jato. Certamente um dos motivos da recomendação.
A bela biografia de Tiradentes. Da Companhia das Letras. 2018.
É amplamente sabido que entre os que alimentavam "o louco desejo de liberdade", havia um arrependido. Até aí nada demais. O passo seguinte era o de delatar o movimento, esperando em troca, favorecimentos pessoais. Joaquim Silvério dos Reis tinha notória experiência no lidar com os governantes. Vamos a uma das passagens em que me detive:
"De acordo com as Ordenações Filipinas, havia uma única chance de salvação para quem cometesse o crime de lesa-majestade. O caminho da redenção era dado no livro 5, título 6, parágrafo 12: delatar os cúmplices. Quem traísse o rei, mas em seguida traísse os comparsas, entregando-os à justiça, mereceria perdão. O dispositivo determinava que, além de ficar livre de qualquer penalidade, o denunciante era, dependendo do caso, merecedor de 'mercês'". Mais adiante é relatado o seu encontro com o governador:
"Entre assustado e cauteloso, Silvério dos Reis desfiou seu rosário - e começou mentindo. Disse que o que o trazia até ali era seu senso de lealdade para com a 'augusta soberana', d. Maria, dever que ele cumpria com risco de perder a vida. Feita a lacrimosa introdução, ele continuou adulterando os fatos. Contou ao governador que, no mês anterior, havia tomado conhecimento - acidentalmente - de que um grupo de 'poderosos e magnatas' de Minas planejava tomar a capitania de sua majestade, tornando-a independente. Segundo Silvério dos Reis, a descoberta da trama se dera graças a um acaso guiado pelos desígnios de Deus. Como andava desgostoso pela iminente perda do título de coronel e de seu regimento de milícia, ele caíra na besteira de fazer queixas contra a Coroa publicamente, o que teria aberto uma brecha para que os conspiradores tentassem recrutá-lo. Ele teria então sido convidado a participar da 'falsidade que se fulmina[va]' sob a promessa de ter extintas suas dívidas com a Real Fazenda..." Aí começou a desfiar a lista de nomes de seus ex companheiros.
Em outro post eu já manifestei a minha absoluta inconformidade com o instrumento da delação. Creio que a leitura dessas passagens, entre outras tantas, só me fez crescer a convicção. O sujeito é duplamente criminoso. Pela sua ação primeira e pela delação de companheiros, na segunda. Eis o Post: http://www.blogdopedroeloi.com.br/2017/06/a-partir-de-agamben-reflexoes-em-torno.html
Joaquim Silvério dos Reis, chegou a ser preso por alguns meses, obtendo depois a liberdade, negada aos ex companheiros. Por toda a sua vida continuou a se vangloriar como o delator primeiro, o de número um, à espera de "mercês". Algumas, de fato, ele obteve. Mas a história o julgou pesadamente.Deixo também a resenha de O Tiradentes - uma biografia de Joaquim José da Silva Xavier. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/01/o-tiradentes-uma-biografia-de-joaquim.html
No post a que já fiz referência, eu citei Agamben, a quem eu retorno, com três parágrafos de transcrição de parte de seu livro Meios sem fim. Notas sobre política. São um pouco longos mas vale a pena a sua leitura. São sobre delação. Ei-los:
"Começaram como membros de brigadas e mafiosos, e, desde então, assistimos a um desfile interminável de rostos torvos em sua convicção, decididos no seu próprio vacilar. Às vezes, no caso dos mafiosos, o rosto aparecia na sombra para impedir que fosse reconhecido e - como da sarça ardente - escutávamos 'apenas uma voz'. Com essa voz profunda da sombra chama, nos nossos dias, a consciência, como se ele não conhecesse outra experiência ética fora do arrependimento. Precisamente aqui, no entanto, se trai a sua inconsciência, pois o arrependimento é a mais traiçoeira das categorias morais - aliás, não é nem mesmo certo se ela pertence à classe dos conceitos éticos genuínos. É conhecido o gesto decisivo com que Espinoza nega ao arrependimento todo direito de cidadania em sua Ética: quem se arrepende, escreve ele, é duas vezes infame, uma vez por ter cometido um ato do qual teve que se arrepender, e uma segunda vez porque se arrependeu dele. Mas quando, já no século XII, o arrependimento penetra com força na moral e na doutrina católica, logo se apresenta como um problema. Como provar, com efeito, a autenticidade do arrependimento? Aqui o campo logo se divide entre quem, como Abelardo, exigia apenas a contrição do coração, e os 'penitenciais', para os quais importante não era, ao contrário, a insondável disposição interior do arrependimento, como o cumprimento de inequívocos atos exteriores. Toda a questão, portanto, se envolveu imediatamente em um círculo vicioso, no qual os atos exteriores deviam atestar a autenticidade do arrependimento e a contrição interior, garantir a genuinidade das obras, segundo a mesma lógica para a qual, nos processos atuais, denunciar os companheiros é garantia da veracidade do arrependimento e o arrependimento íntimo sanciona a autenticidade da denúncia.
Que o arrependimento tenha ido parar nas salas dos tribunais não é, de resto, um acaso. A verdade é que ele se apresenta desde o início como um compromisso equívoco entre moral e direito. Através do arrependimento, uma religião, que havia ambiguamente chegado a um acordo com o poder mundano, procura sem êxito dar razão ao seu compromisso, instituindo uma equivalência entre penitência e pena, entre delito e pecado, mas não há indício mais certo da ruína irreparável de toda experiência ética que a confusão entre categorias ético religiosas e conceitos jurídicos, que chegou hoje ao seu paroxismo. Atualmente, onde quer que se fale de moral, as pessoas têm categorias do direito na ponta da língua, e onde quer que façam leis e processos, a serem manejados como obscuros feixes de lictor (Em italiano, fascio littorio: símbolo de origem etrusca, associado ao poder e à autoridade, que foi usado pelo Império Romano e pelo fascismo na Itália), são, ao contrário, conceitos éticos.
Tanto mais irresponsável é a gravidade com que os laicos se apressaram a cumprimentar a entrada do arrependimento - como ato incontestável de consciência - nos códigos e nas leis. Pois se realmente desventurado é quem é constrangido por uma convicção inautêntica a jogar toda a sua experiência interior em um conceito falso, para ele ainda há, talvez, uma esperança. Mas para os mediocratas que se vestem de moralistas e para os maîtres à penser televisivos, os quais em sua desventura edificaram vitórias pedantes, para estes, não, não há realmente esperança". AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim - notas sobre política. Autêntica. Belo Horizonte - São Paulo. 2015. pp. 115-117. A edição brasileira é de 2015.
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