sexta-feira, 25 de setembro de 2020

O imaginário medieval do Diabo. Jacques Le Goff.

Uma das coisas que efetivamente aprendi na vida é a de que nenhuma ideologia se impõe, se paralela a ela, não se criar um poderoso e temível inimigo. Isso não foi diferente dentro da construção do cristianismo medieval. Lendo o belo livro A civilização do ocidente medieval, de Jacques Le Goff, encontrei uma bela passagem referente a esse fenômeno: a construção do demônio no imaginário medieval. Essa passagem tem por título: "O além: O diabo. Vejamos.

A civilização do ocidente medieval. Jacques Le Goff. EDUSC. Tradução de José Rivair de Macedo.

"Um poderoso personagem disputa com Deus o seu poder no céu e sobretudo na terra: o Diabo.

Na Alta idade Média, Satã não tem papel de primeiro plano, nem muito menos uma personalidade de destaque. Ele aparece com nossa Idade Média, e se afirma no século 11, sendo uma criação da sociedade feudal. Com seus sequazes, os anjos rebeldes, ele é a própria imagem do vassalo pérfido, do traidor. O Diabo e o Bom Deus, eis o par que domina a vida da Cristandade medieval, cuja luta, aos olhos dos homens da Idade Média, explica todos os pormenores dos acontecimentos.

Segundo a ortodoxia cristã, sem dúvida Satã não é igual a Deus, mas sim sua criatura, um anjo decaído. A grande heresia da Idade Média foi, sob formas e nomes diversos, o maniqueísmo. Pois o maniqueísmo professava a crença em dois deuses, um do bem e outro do mal, criador e senhor deste mundo. Para a ortodoxia cristã, o grande erro do maniqueísmo era por Deus e Satã, o Diabo e o Bom Deus, em pé de igualdade. Não obstante, todo o pensamento e o comportamento dos homens da Idade Média eram dominados por um maniqueísmo mais ou menos consciente, mais ou menos sumário. Para eles, de um lado estava Deus e de outro o Diabo. Esta grande divisão dominava a vida moral, a vida social  e a vida política. A humanidade encontrava-se dividida entre estes dois poderes divergentes e irreconciliáveis. Se um ato fosse bom, provinha de Deus; se fosse mau, vinha do Diabo. No Juízo Final os bons irão para o Paraíso e os maus serão lançados no Inferno. Só muito tardiamente a Idade Média veio a tomar conhecimento do Purgatório, do fim do século 12, que lhe permitiria dosar melhor um julgamento durante muito tempo inspirado por seu maniqueísmo latente e intolerante. A iconografia resistiu à ideia do purgatório no século 13, ignorando o julgamento individual pos-mortem, e durante muito tempo, na cena do Juízo Final, continuou a representar apenas a divisão da humanidade em eleitos e condenados. A bipartição da humanidade nos tímpanos das catedrais é a imagem implacável desta intolerância.

Os homens da Idade Média estavam, pois, constantemente divididos entre Deus e Satã.  Este era tão real quanto o outro, e até aparecia mais em carne e osso. É certo que a iconografia podia figurá-lo sob uma forma simbólica: ele era a serpente do pecado original, aparecendo entre Adão e Eva; era o Pecado., pecado da carne ou do espírito, separados ou juntos; era o símbolo do apetite intelectual e do apetite sexual. Mas aparecia principalmente com variada aparência antropomórfica. Podia se manifestar a qualquer instante aos homens, o que provocava uma terrível angústia. Todos sabiam que viviam constantemente espreitados pelo 'antigo inimigo do gênero humano'.

Ele aparecia sob dois aspectos, resíduo talvez de uma dupla origem. Como sedutor, revestia-se de aparência enganadora e aliciante. Como perseguidor, aparecia sob seu aspecto terrificante.

Em seu disfarce mais comum, ele se vale da aparência de uma jovem de grande beleza, mas a Legenda Aurea está repleta de narrativas de peregrinos ingênuos ou fracos de fé que sucumbem ao Diabo que lhes aparece como um falso Santiago.

O Diabo perseguidor geralmente se recusa a disfarçar. Mostra-se às suas vítimas sob seu aspecto repugnante. No início do século 11 ele foi visto pelo monge Raul Gabler, 'numa noite antes do ofício das matinas', no mosteiro de Saint-Léger de Champeaux: 'Vi aparecer ao pé de meu leito uma espécie de homenzinho horrível de se ver. Tanto quanto pude apreciar, era de estatura mediana, com pescoço fino, rosto macilento, olhos muito negros, fronte rugosa e franzida, narinas delgadas, boca grande, lábios grossos, queixo fugidio e muito estreito, barba de bode, orelhas peludas, cabelos eriçados e emaranhados, dentes de cão, crânio pontudo, peito inchado, tinha uma corcunda nas costas, nádegas frementes e vestimenta sórdida'.

As infelizes vítimas femininas e masculinas de Satã costumam ser a presa do ímpeto sexual dos demônios conhecidos como íncubos e súcubos.

As vítimas de elite  são constantemente assediados por Satã, que se vale de todas as astúcias, de todos os disfarces, de todas as tentações, de todas as torturas. A mais célebre dessas vítimas heroicas do Diabo foi Santo Antônio.

Objeto de uma disputa terrena entre Deus e o Diabo, também na morte o homem era objeto de uma derradeira e decisiva disputa. A arte medieval representou à saciedade o momento final da existência terrestre, em que a alma do morto era disputada por Satã e São Miguel antes de ser levada pelo vencedor ao Paraíso ou ao Inferno. Notemos ainda aqui que, para não cair no maniqueísmo, o adversário do Diabo não é Deus em pessoa, mas seu lugar-tenente. Mas sublinhemos sobretudo que esta imagem do encerramento da vida do homem medieval acentua a passividade de sua existência, sendo a mais alta e surpreendente expressão de sua alienação.

Os poderes sobrenaturais não estavam reservados exclusivamente a Deus e Satã. Alguns homens eram dotados deles em certa medida. Uma camada superior da humanidade medieval era constituída de indivíduos munidos de dons sobrenaturais. O trágico disto é que o indivíduo comum, da massa, tinha dificuldade em distinguir entre os bons e os maus, sendo constantemente enganado ao participar deste teatro de ilusões e equívocos que foi a Idade Média. Jacopo de Varaze lembra na Legenda Aurea as palavras de Gregório Magno: 'Os milagres não fazem o santo, são apenas o seu sinal', e esclarece: 'Pode-se fazer milagres sem ter o Espírito Santo, pois os próprios maus já puderam se vangloriar de ter feito milagres'.

Os homens da Idade Média não duvidam que o Diabo pudesse realizar milagres - sem dúvida com a permissão de Deus, mas isso não muda nada o efeito produzido sobre o homem. Esta faculdade era também associada a mortais, e podia ser utilizada para o bem ou para o mal. Daí advém toda a dualidade equívoca da magia negra e da magia branca, que o vulgo tinha dificuldade de distinguir. É a dupla antitética de Simão o Mago e de Salomão o Sábio. De um lado, a gente maléfica dos feiticeiros, de outro o grupo bendito dos santos. O problema é que os primeiros apresentam-se em geral como santos disfarçados, pertencendo à grande família dos falsos profetas enganadores. Sem dúvida que podem ser desmascarados e opostos em fuga com um sinal de cruz, uma invocação oportuna, uma prece adequada. Mas como desmascará-los? Uma das tarefas essenciais dos verdadeiros santos é precisamente reconhecer e expulsar os preparadores de falsos, ou melhor, de maus milagres, isto é, os demônios e seus cúmplices terrestres, os feiticeiros. Neste aspecto São Martinho era um especialista. Segundo a Legenda Aurea, 'Ele brilhava por sua habilidade em reconhecer demônios, e os descobria sob todos os seus disfarces'. A humanidade medieval estava cheia de possuídos, vítimas infelizes de Satã que se escondia em seus corpos, ou de malefícios de magos. Somente os santos podiam salvá-los, obrigando seus perseguidores a soltá-los. O exorcismo era função essencial dos santos. A humanidade medieval excluía uma massa de possuídos de fato e em potencial, atormentada entre uma minoria de maus e uma elite de bons feiticeiros. Notemos ainda que embora 'os bons feiticeiros' fossem recrutados essencialmente no grupo dos clérigos, alguns leigos eminentes podiam também entrar nesta categoria. É o caso, do qual voltaremos a falar, dos reis milagreiros, dos reis taumaturgos".

Texto retirado de: LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Bauru, EDUSC. 2005. Páginas 153-156.


Adendo: Em 19.10.2020. Impressionante relato sobre a invenção do demônio no imaginário ocidental é encontrado no livro de Jean Delumeau - História do medo no Ocidente 1300-1800. O capítulo 7, das páginas 239 a 259 é dedicado a Satã. Uma história de horrores, seguramente.

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