terça-feira, 20 de outubro de 2020

História do medo no Ocidente - 1300-1800. Jean Delumeau.

 No rastro da leitura de A Civilização do Ocidente Medieval, de Jacques Le Goff e de História do Riso e do Escárnio, de Georges Minois, o livro da vez foi História do Medo no Ocidente - 1300-1800, de Jean Delumeau. Um livro impressionante. Que força e poder tem o tal do medo, especialmente, quando se está diante de um período histórico em que se desenvolveram a Guerra dos Cem Anos (1337-1453 - entre a Inglaterra e a França), duas reformas religiosas (a protestante - Lutero - 1517) e a contra reforma (Concílio de Trento 1535-1563) e a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648 - entre católicos e protestantes). Deixo o link dos dois livros:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/10/a-civilizacao-do-ocidente-medieval.html  e

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/10/historia-do-riso-e-do-escarnio-georges.html

O notável livro de Jean Delumeau, História do medo no ocidente - 1300-1800. Tradução de Maria Lúcia Machado.

Na contracapa do livro encontramos uma síntese quase perfeita do livro: "Ao tomar como objeto de estudo o medo, Jean Delumeau parte da ideia de que não apenas os indivíduos mas também as coletividades estão engajadas num diálogo permanente com a menos heroica das paixões humanas. Revelando-nos os pesadelos mais íntimos da civilização ocidental do século XIII ao XVIII - o mar, os mortos, as trevas, a peste, a fome, a bruxaria, o Apocalipse, Satã e seus agentes (o judeu, a mulher, o muçulmano -, o grande historiador francês realiza uma obra sem precedentes na historiografia do Ocidente".

Vejamos isso de uma forma mais organizada através dos doze capítulos do livro, precedidos de uma introdução e sucedidos por conclusão e pela referência bibliográfica das inúmeras notas. Tudo isso ocupa 471 páginas. O livro se divide em duas partes: Parte um: "Os medos da maioria", com cinco capítulos e a Parte dois, " A cultura dirigente e o medo", com mais sete capítulos. 

Os capítulos da primeira parte, com os respectivos subtítulos são: 1. Onipresença do medo. "Mar variável onde todo temor abunda"; o distante e o próximo; o novo e o antigo; hoje e amanhã; malefícios e adivinhação. 2. O passado e as trevas. Os fantasmas; o medo da noite. 3.Tipologia dos comportamentos coletivos em tempo de peste. Presença da peste; imagens de pesadelo; uma ruptura inumana; estoicismo e desregramentos - desalento e loucura; covardes ou heróis; de quem é a culpa. 4. Medo e sedições I. Objetivos, limites e métodos de investigação; o sentimento de insegurança; medos mais precisos; o temor de morrer de fome; o fisco: um espantalho. 5. Medo e sedições II. Os rumores; as mulheres e os padres nas sedições; o iconoclastismo; o medo da subversão.

Os capítulos da segunda parte, também com os respectivos subtítulos são: 6. "A espera de Deus". Medos escatológicos e nascimento do mundo moderno; duas leituras diferentes das profecias apocalipticas; os meios de difusão dos medos escatológicos; um primeiro tempo forte dos medos escatológicos: o fim do século XIV e o começo do século XV; um segundo tempo forte: a época da reforma; um Deus vingador e um mundo envelhecido; a aritmética das profecias; geografia dos medos escatológicos. 7. Satã. Ascensão do satanismo; satanismo, fim do mundo e mass media da Renascença; O "príncipe deste mundo"; as "decepções" diabólicas. 8. Os agentes de Satã. I. Idólatras e muçulmanos. os cultos americanos; a ameaça muçulmana. 9. Os agentes de Satã. II. O judeu, mal absoluto. As duas fontes do antijudaísmo; papel do teatro religioso, dos pregadores e dos neófitos; as acusações de profanações e assassinatos rituais; converter; isolar; expulsar; uma nova ameaça: os convertidos. 10. Os agentes de Satã. III. A mulher. Uma acusação que data de longe; a diabolização da mulher; o discurso oficial sobre a mulher no final do século XVI e no começo do século XVII; uma produção literária frequentemente hostil à mulher; uma iconografia frequentemente hostil à mulher. 11. Um enigma histórico: A grande repressão da feitiçaria I. O dossiê. A escalada de um medo; uma legislação de inquietude; cronologia, geografia e sociologia da repressão. 12. Um enigma histórico: a grande repressão da feitiçaria II. Ensaio de interpretação. O universo da heresia; o paroxismo de um medo; uma civilização da blasfêmia; um projeto de sociedade.

Como podem ter notado, o cristianismo perpassa praticamente todo o livro. Para mim dois capítulos se revestiram de maior significado, talvez porque chegaram muito fortemente até os nossos tempos, o capítulos 9 e 10, sobre os agentes de Satã, o judeu como o mal absoluto e a mulher. Na década de 1960, eu ainda rezava na sexta feira da Paixão "Oremos etiam pro perfidis judeis". Essa oração foi abolida pelo Concílio Vaticano II (1962-1965). E sobre a mulher então, nem falar. Capítulos muito ilustrativos e cuja leitura eu recomendo muito.

Ainda três parágrafos das orelhas do livro: "'Não temos história do amor, da morte, da crueldade, da alegria...' Essa queixa de Lucien Fabvre em 1948, tão repetida desde então, foi como um manifesto, que definiu o programa de trabalho da disciplina que se chamou a história das mentalidades. Uma das lacunas que o fundador da escola dos Annales deplorava é preenchida é preenchida por este livro de Jean Delumeau: a história dessa paixão primordial que é o medo. Paixão pouco estudada, porque não é nada honrosa. Quem de nós, perguntava Roland Barthes (em 1973), confessa seu medo? Sabemos que a filosofia clássica dividiu, em linhas gerais, as paixões em positivas e negativas: amor e ódio, coragem e medo. É claro que as paixões positivas são mais bem vistas, mas dentre as negativas, a mais vil sempre foi o medo (em suas formas brandas - temor, receio, timidez - ou excessivas: covardia, pusilanimidade). E no entanto, se paixão é pathos, se antes que o século XIX identificasse paixão a amor-paixão ela esteve mais ligada à passividade, ao que sofremos (nos dois sentidos do termo, descritivo e doloroso), o medo talvez seja a paixão em que mais sofremos, isto é, a paixão por excelência.

Que estudo pode, assim, ser mais oportuno que o medo? É um dos grandes temas recalcados de nossa cultura (voltamos a lembra Roland Barthes). Apesar disso, ou por isso mesmo, ele se destaca na estratégia das paixões. Como ler sem notar, no romance, na poesia, no teatro, a força do medo? Como pensar a política sem ver, não só o que os homens deixam de fazer por covardia, mas também o que fazem por medo? Como, enfim, pensar a condição humana sem estes pares primordiais, não só os que mencionei acima, mas ainda outro que vem desde os Antigos, medo e esperança?

Thomas Hobbes, que nasceu de parto prematuro quando o pais fugiam, em 1588, da temida Armada de Felipe II, escreveu na velhice: 'Minha mãe pariu gêmeos, eu e o medo'. Esta frase se entendeu como significando: o gêmeo do medo se identifica com esta paixão; Hobbes seria o filósofo do pavor. Mas, se os gêmeos são e foram, não dois medos, mas medo e esperança (the old Twins, Hope and Fear, dizia John Donne por essa época) - então muda o sentido de toda a sua filosofia política. E este exemplo vale para a história que faz Delumeau. Conhecer o medo, devassar seus arcanos não é só entender a uma curiosidade particular. É ampliar nossas consciências para reconhecer um fantasma, cuja força está em ser inconfesso". Estes parágrafos são de Renato Janine Ribeiro.


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