domingo, 6 de junho de 2021

Textos de Literatura. Aulas de filosofia. II. Servidão Humana. W. Somerset Maugham.

Continuo hoje com a apresentação de textos de literatura para aulas de Filosofia. Continuo com o escritor francês/inglês W. Somerset Maugham e o livro Servidão Humana. Hoje apresento o capítulo LIII. Nele iremos encontrar Philip, o personagem central da obra, com algo em torno de 22 anos, refletindo sobre os rumos a tomar em sua vida, após dois anos vividos em Paris e após a decisão de não prosseguir os seus estudos de pintura, para a qual, descobrira, não ter os suficientes dotes e a devida vocação.

Philip retorna para a casa de seus tios, para "iniciar a vida pela terceira vez". Ele, desde cedo, se tornara órfão, tanto de pai, quanto de mãe. A sua educação fora confiada ao seu tio, um pastor da Igreja Anglicana. Decide-se pelos estudos de medicina. Dúvidas existenciais o acometem. No texto número 1, encontramos este mesmo Philip, na cidade de Heidelberg, aos 20 anos, para aprender a língua alemã. Segue o post com o texto. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2021/06/textos-de-literatura-aulas-de-filosofia.html

Servidão Humana. W. Somerset MaughamAbril. 1971. A 1ª publicação é de 1946.



XXXXXXX

CAPÍTULO LIII. 

O Sr. Carey retirou-se para o gabinete, levando o jornal. Philip passou para a cadeira do tio (era a única confortável da sala) e olhou pela janela para a chuva que caía.  Mesmo com aquele tempo tristonho, havia qualquer coisa de repousante nos campos verdes que se estendiam para o horizonte. Havia na paisagem um encanto íntimo que ele não se lembrava ter notado antes. Dois anos de França tinham-lhe aberto os olhos para a beleza daquela região.

Pensava com um sorriso na observação do tio. Era uma sorte que o seu espírito tendesse para a volubilidade. Começara a dar-se conta da grande perda que havia sofrido com a morte do pai e da mãe. Esse era um dos motivos que, na vida, o haviam impedido de ver as coisas da mesma maneira que os outros. O amor dos pais pelos filhos é o único sentimento perfeitamente desinteressado. Crescera entre estranhos conforme pudera, mas raramente tinha sido tratado com paciência e indulgência. Orgulhava-se do domínio que tinha sobre si mesmo. Fora-lhe inculcado pela zombaria dos seus companheiros. Depois, chamaram-no de cínico e insensível. Adquirira um aspecto calmo e alheio e, as mais das vezes, uma máscara impassível, de maneira que agora já não podia mostrar os seus sentimentos. Diziam-no despido de emoções, mas ele sabia que estava à mercê delas: uma bondade inesperada comovia-o tanto que às vezes não se aventurava a falar para que não lhe notassem a insegurança da voz. Lembrava-se da amargura de sua vida na escola, da humilhação que havia sofrido, dos gracejos que lhe haviam incutido um terror mórbido do ridículo. Recordava-se também do seu sentimento de solidão depois que, posto em face do mundo, medira a distância que separava as suas quimeras da realidade. Mas, apesar de tudo, podia observar-se como se fosse um outro e sorrir divertido.

'Palavra que, se eu não fosse volúvel, me enforcaria', refletiu alegremente.

Tornou a pensar na resposta que havia dado ao tio quando este lhe perguntara o que tinha aprendido em Paris. Tinha aprendido muito mais do que dissera. Certa palestra com Cronshaw lhe ficara gravada na memória e uma frase por ele empregada, frase assaz comum, lhe fizera trabalhar o cérebro.

- Meu caro rapaz - tinha dito Cronshaw -, a moral abstrata não existe.

Quando Philip deixou de crer no cristianismo, sentiu que um grande peso lhe era tirado dos ombros; despojando-se da responsabilidade que sobrecarregava cada ato, quando cada ato era de infinita importância para a salvação de sua alma imortal, experimentou uma viva sensação de liberdade. Mas agora sabia que isso fora uma ilusão. Ao abandonar a fé em que tinha sido criado, mantivera intata a moral que era sua parte integrante. Resolveu, então, pensar por si mesmo sobre as coisas e não se deixar influenciar por preconceitos. Descartou-se de vícios e virtudes e rejeitou as leis assentes do bem e do mal, com a ideia de encontrar por si a sua própria norma de vida. Afinal, nem sabia se era mesmo necessário possuir tal norma. Essa era uma das coisas que desejava descobrir. Sem dúvida,, muito do que parecia válido assim se afigurava porque lhe fora ensinado desde a primeira infância. Lera inúmeros livros, mas eles não o ajudaram muito, pois baseavam-se na moral cristã; e mesmo os autores que proclamavam não acreditar no cristianismo nunca se davam por satisfeitos senão quando organizavam um sistema de moral de acordo com o Sermão da Montanha. Não valia a pena ler um longo volume para aprender que nos devemos conduzir exatamente como os outros. Philip desejava saber como devia proceder, e julgava-se capaz de fugir à influência do ambiente. Ao mesmo tempo, porém, era necessário continuar vivendo e, enquanto não formava uma teoria de conduta, traçou para si mesmo uma regra provisória:

'Segue as tuas inclinações levando na devida conta o guarda  da esquina'.

A completa liberdade de espírito, julgava ele, era o que de melhor havia adquirido em Paris. Afinal, sentia-se absolutamente livre. Lera sem método inúmeras obras filosóficas, e, agora, aguardava com delícia o lazer dos próximos meses. Começou a ler a esmo. Atacava cada novo sistema com um pequeno prurido de emoção, esperando encontrar nele alguma orientação para a sua conduta. Sentia-se como um viajante em país desconhecido e, à medida que avançava, era fascinado pela empresa. Lia comovidamente, como os outros leem pura literatura, e o coração lhe batia com força quando descobria, em palavras nobres, alguma coisa que já havia sentido de modo obscuro. Tinha o espírito concreto e movia-se com dificuldade nas regiões abstratas, mas, ainda quando não podia seguir o raciocínio, experimentava um curioso prazer em acompanhar os pensamentos tortuosos que desfilavam agilmente nos limites do incompreensível. Por vezes parecia que grandes filósofos nada lhe tinham para dizer, ao passo que, em outros, reconhecia um espírito congênere ao seu. Era como o explorador da África Central que depara subitamente com um vasto planalto onde os prados são pontilhados de árvores, de modo que é fácil imaginar-se num parque inglês. Deliciava-se com o robusto bom senso de Thomas Hobbes. Espinosa enchia-o de respeito: nunca entrara em contato com um espírito tão nobre, tão inacessível e austero, lembrava-lhe a estátua de Rodin, L'Age d'Airain, que admirava apaixonadamente. Vinha depois Hume. O ceticismo desse filósofo encantador fazia vibrar em Philip uma corda simpática, e, ao sabor daquele estilo translúcido que expunha ideias intrincadas em palavras simples, medidas e musicais, lia-o como leria uma novela: com um sorriso de prazer nos lábios. Mas em nenhum pode encontrar exatamente o que desejava. Haja lido nalguma parte que todo homem nasce platônico, aristotélico, estoico ou epicurista; e a história de George Henry Lewis (além de dizer que a filosofia é pura fantasmagoria) lá estava para demonstrar que o pensamento de cada filósofo se achava inseparavelmente ligado ao homem que ele fora. Conhecendo-se-lhe a vida, era fácil imaginar em grande parte a filosofia que escrevera. Dir-se-ia que não agimos de certa maneira por pensar assim, mas antes pensamos de certa maneira por assim termos sido feitos. A verdade nada tem que ver com isso. Não existe a verdade. Cada homem é o seu próprio filósofo, e os primorosos sistemas que os grandes homens do passado construíram só foram válidos para os seus autores.

O importante, pois, é descobrir o que somos e o nosso sistema filosófico se construirá por si mesmo.  Parecia a Philip haver três coisas a encontrar: a relação do homem com o mundo em que vive, sua relação com os homens entre os quais vive e, finalmente, a relação do homem consigo próprio. Traçou um plano pormenorizado de estudo.

A vantagem de viver no estrangeiro é que, entrando-se em contato com os usos e costumes do povo entre o qual se vive, aqueles são observados de fora e percebe-se que não resultam da necessidade, como julgam os que os praticam. Não se pode deixar de descobrir que as crenças para nós indiscutíveis são, para o estrangeiro, absurdas. O ano passado na Alemanha e a longa permanência em Paris tinham preparado Philip para receber os ensinamentos céticos que agora lhe chegavam com tamanha sensação de alívio. Viu que nada era bom e nada era mau: as coisas simplesmente se adaptavam a um fim. leu a Origem das Espécies. O livro parecia oferecer a explicação de muitos pontos que o inquietavam. Era, agora, como o explorador que infere a existência de certos acidentes naturais e, batendo as margens de um largo rio, depara aqui com o afluente que previa, ali com as planícies férteis e povoadas e, mais além, com as montanhas.  Quando se faz uma grande descoberta, o mundo se surpreende ao depois de que ela não tenha sido aceita imediatamente, e mesmo nos que lhe reconhecem a verdade o efeito é sem importância. Os primeiros leitores da Origem das Espécies aceitaram-na com a inteligência, mas as suas emoções, que são a base da conduta, ficaram intatas.

Nascido uma geração após o aparecimento desse grande livro, e depois de já haver passado a fazer parte das ideias usuais muita coisa que escandalizara os contemporâneos da obra, Philip pode aceitá-la de coração jubiloso. A grandeza da luta pela vida lhe parecia emocionante e a regra moral que ela sugeria concordava com as suas predisposições. Dizia para si mesmo que a força era o direito. De um lado está a sociedade, um organismo com as suas leis de desenvolvimento e autopreservação e, do outro, o indivíduo. A sociedade classifica de virtuosas as ações que redundam em seu proveito, e de viciosas as que a prejudicam. Bem e mal não significam mais do que isso. O pecado é um preconceito de que o homem livre se deve desembaraçar. Na luta com o indivíduo, a sociedade dispõe de três armas: a lei, a opinião pública e a consciência. As duas primeiras podem ser combatidas pela astúcia, única arma do fraco contra o forte - o vulgo exprime isso muito bem quando diz que pecado é ser apanhado nele -, mas a consciência é o traidor dentro dos muros, lutando na alma de cada um em prol da sociedade e levando o indivíduo a imolar-se, num sacrifício irrefletido, à prosperidade do inimigo. Sim, porque é evidente que o Estado e o indivíduo consciente de si mesmo são irreconciliáveis. Aquele se serve do indivíduo para fins próprios, espezinhando-o se é contrariado, recompensando-o com medalhas, honras e pensões se é fielmente servido; este, forte somente na sua independência, move-se no seio do Estado, pagando (por conveniência) certos benefícios recebidos, em dinheiro ou serviços, mas sem sentir a menor obrigação; indiferente às recompensas, pede apenas que o deixem em paz. É um viajante independente que faz uso dos bilhetes Cook porque lhe  poupam incômodos, mas olha com um desprezo bem-humorado para os grupos que se entregam ao guia. O homem livre não pode agir mal. Faz tudo o que deseja... quando pode. Sua força é o único estalão de sua moral. Reconhece as leis do Estado e pode infringi-las sem se sentir em falta, mas, quando punido, aceita o castigo sem rancor.

A força está com a sociedade.

Mas, se para o indivíduo não existe bem nem mal, a consciência - parecia a Philip - perde o seu poder. E foi com um grito de triunfo que, segurando a velhaca, expulsou-a de si. Isso, entretanto, não o aproximou do sentido da vida. Por que o mundo fora criado e para que nasciam os homens? Essa questão continuava tão insolúvel como sempre. Seguramente devia haver alguma razão. Pensou em Cronshaw e na sua parábola do tapete persa. Ele a oferecia como uma solução do enigma, declarando misteriosamente  que a resposta só tinha valor quando encontrada por quem a procurasse.

- Que diabo queria dizer? - murmurou sorrindo.

E assim, no último dia de setembro, desejoso de por em prática todas essas novas teorias sobre a vida, Philip, com 1.600 libras e o seu pé equino, tornou a partir para Londres a fim de iniciar a vida pela terceira vez. MAUGHAM. W. Somerset. Servidão Humana. Abril. 1971. Páginas 240 - 243. Capítulo 53.

2 comentários:

  1. Respostas
    1. Creio que sim. Temas existenciais. Ao longo de minha vida profissional tive boas experiências nesse sentido. Vou desenvolver este projeto sem stress, ao longo de minhas leituras. Darei especial atenção aos romances de formação. Leni, agradeço a sua manifestação.

      Excluir

Obrigado pelo comentário. Depois de moderado ele será liberado.