sábado, 24 de julho de 2021

Discurso sobre a origem da desigualdade. Jean Jacques Rousseau.

Em 2004 comprei um livro raro. O comprei na Feira dos Livros Usados, um sebo aqui de Curitiba. A edição do livro não tem data, mas o seu antigo proprietário anotou o mês e o ano da compra. Novembro de 1949. O livro é  Discursos sobe as ciências e as arte e sobre a origem da desigualdade de Jean Jacques Rousseau (1712- 1778). O patrono da Revolução Francesa escreveu esse discurso no ano de 1775. O título completo é Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Desde já aponto para a propriedade como sendo esta origem e fundamento. O primeiro ensaio eu li no ato da compra e o segundo, o li agora, lendo sobre o grande democrata. O li com muito cuidado, pois o livro se esfarelava diante de qualquer falta de cuidado.

É esta edição que eu tenho. Tradução de Maria Lacerda de Moura. Atena Editora. 

A tese do discurso é exatamente a de que o ser humano, bom em seu estado de natureza, passa a ser portador de todas as maldades possíveis a partir da instituição da propriedade privada e da legislação que se seguiu e que se constituiu nos fundamentos que arruinaram o mundo. O autor com quem ele estabelece o contraponto é Thomas Hobbes, o da teoria de que o homem em seu estado de natureza é o Homo homini lupus, o da guerra de todos contra todos.

O discurso, depois de uma breve apresentação, tem dois capítulos. No primeiro ele apresenta o homem em seu estado de natureza e afirma que ele não é nem bom, nem mau, uma vez que os padrões morais de julgamento já são uma invenção da sociedade. Considera que o homem em seu estado de natureza é feroz em sua defesa e busca por alimentos, mas é incapaz de ser efetivamente mau. Examina a fragilidade do ser humano e a sua lenta evolução. Um destaque todo especial é dado para os avanços da linguagem que evoluiu na formação dos conceitos a partir da realidade concreta até atingir a abstração, com o metafísico e o moral. Mostra grande simpatia para com os índios caraíbas, donde deve derivar a sua imagem do bom selvagem.

Contra Hobbes aponta para o erro de origem de sua pesquisa. O seu homem em estado de natureza, já não vivia nesse estágio primitivo. Já estava contaminado pela vida civilmente constituída. Não chega nem a comentar o Estado Leviatã, preconizado pelo autor. Faz uma pergunta interessante, já puxando para o mundo das instituições. A quem recorreria o homem em estado de natureza quando ele se sentia injustiçado? Tomo um parágrafo já do final desse capítulo como ilustração: "Sem prolongar inutilmente esses detalhes, cada qual deve ver, sendo os laços da servidão formados exclusivamente da dependência mútua dos homens e das necessidades recíprocas que os une, é impossível sujeitar um homem sem o por antes na situação de não poder passar sem outro homem; situação que, não existindo no estado de natureza, deixa cada um livre do jugo e torna vã a lei do mais forte".

O segundo capítulo começa de forma bombástica, com uma frase que se tornou famosa: "O primeiro que, tendo cercado um terreno, se lembrou de dizer: Isto é meu, e encontrou pessoas bastante simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando os buracos, tivesse gritado aos seus semelhantes: 'Livrai-nos de escutar esse impostor; estareis perdidos se esqueceres que os frutos são de todos, e a terra de ninguém!'.

Eu continuo mais um pouco: Parece, porém, que as coisas já tinham chegado ao ponto de não mais poder ficar como estavam: porque essa ideia de propriedade, dependendo muito de ideias anteriores que só puderam nascer sucessivamente, não se formou de repente no espírito humano: foi preciso fazer muitos progressos, adquirir muita indústria e luzes, transmiti-las e aumentá-las de idade em idade, antes de chegar a esse último termo de estado de natureza". Passa a fazer então uma retrospectiva dessa evolução. De John Locke toma uma frase que é lapidar; "Não pode haver injúria onde não há propriedade". Em sua análise mostra que quando a propriedade se instaurou, desaparece a bondade original, Instaura-se a desigualdade, afirma-se o amor próprio e institui-se o trabalho e a escravidão. Tudo garantido por leis. Segue-se ainda dominação, violência, rapina, traições e o permanente estado de guerra.

Me permito ainda apresentar o parágrafo final, como uma espécie de síntese do capítulo: "Tratei de expor a origem e o progresso da desigualdade, o estabelecimento e o abuso das sociedades políticas, tanto quanto essas coisas se podem deduzir da natureza do homem, pelas luzes exclusivas da razão, e independentemente dos dogmas sagrados que dão à autoridade soberana a sanção do direito divino. Resulta do exposto que a desigualdade, sendo quase nula no estado de natureza, tira a sua força e o seu crescimento do desenvolvimento das nossas faculdades e dos progressos do espírito humano, tornando-se enfim estável e legítima pelo estabelecimento da propriedade e das leis. Resulta ainda que a desigualdade moral, autorizada unicamente pelo direito positivo, é contrária ao direito natural todas as vezes que não concorre na mesma proporção com a desigualdade física. Essa distinção determina suficientemente o que se deve pensar, nesse sentido, da espécie de desigualdade que reina entre todos os povos policiados, pois é manifestamente contra a lei da natureza, de qualquer maneira que a definamos, que uma criança mande num velho, que um imbecil conduza um homem sábio, ou que um punhado de pessoas nade no supérfluo, enquanto à multidão esfomeada falte o necessário".

Vou continuar trabalhando com Rousseau. Possivelmente seja ele o autor que melhor fundamenta a democracia. Lê-lo serve de alento num momento em que a democracia sofre tantas ameaças. Já comprei, de Ernst Cassirer A questão Jean-Jacques Rousseau, com prefácio e posfácio de Peter Gay. o  grande interprete da modernidade.  É. Pelo jeito, a razão foi sempre instrumental. Também recomendo a litura do primeiro discurso, que mereceu o Prêmio da Academia de Dijon. O recomendo especialmente para os avaliadores de dissertações e de teses. Creio que se tornariam bem mais rigorosos. Muita cópia e pouca criação é a principal constatação de Rousseau.

Um adendo. 21.08.2021. Na introdução do pequeno livro de Ernst Cassirer, A questão Jean-Jacques Rousseau, Peter Gay, cita Emile Faguet falando do Discurso sobre a origem da desigualdade. Vejamos a citação: "E este 'romance da humanidade', como Faguet o chama, tem um tema central: o homem é bom e a sociedade o corrompe" (Página 11). O romance da humanidade! Que bonito.

2 comentários:

  1. Facilitou muito a leitura da obra, ótimos comentários, muito obrigada!

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    1. Eu que agradeço o seu comentário e fico contente que a resenha tenha facilitado a sua leitura. Muito obrigado.

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